sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Graça e pecado original: as disputas de Agostinho contra os pelagianos

No século V, Pelágio havia debatido ferozmente com Santo Agostinho sobre este assunto. A polêmica se prolongou nas questões acerca da graça e da liberdade, colocadas more pelagiano, isto é, uma defronte a outra. A controvérsia entre Agostinho e Pelágio, se resumia em dois pontos teológicos: a liberdade [capacidade] da vontade humana (livre arbítrio), e na maneira como Deus opera sua graça. Quanto ao livre arbítrio, a discussão era se o ser humano é absolutamente capaz de exercer a sua liberdade, ou não. Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes de Adão. Pelágio, contudo negava tal contaminação, e afirmava a inocência da alma, como também a absoluta capacidade de escolha tanto moral, quanto espiritual. A conclusão de Pelágio era clara. O homem é capaz de salvar-se por meio de seus próprios méritos. Desse modo, ele desprezava o papel da graça e negava o pecado original. “Para os pelagianos, o pecado original não era uma propagação, mas somente a imitação de um mau exemplo”.[1] Sua dedução era lógica: se não temos pecado origina, porque o pecado de Adão afetou apenas ele, não necessitamos da graça de Deus.[2]
Para Agostinho, a graça é auxílio da liberdade e não o seu rival como pensava e queria Pelágio.[3] Santo Agostinho, que escreveu um documento contra o pelagianismo, afirmava que o pecado original de Adão foi herdado por toda a humanidade e que, mesmo que o homem caído retenha a habilidade para escolher, ele está escravizado ao pecado e não pode não pecar, muito embora com sua luta e com a Graça de Deus ele possa minimizar seus pecados. A visão de Agostinho da queda foi oposta tanto ao Pelagianismo como ao semi-pelagianismo. Ele disse que a humanidade é uma massa peccati, uma “corja de pecado”, incapaz de levantar-se da morte espiritual. Para Agostinho o homem não pode mais mover ou inclinar a si mesmo a Deus tanto quanto um copo vazio pode se encher. Para ele o trabalho inicial da graça divina pelo qual a alma é liberta da escravidão do pecado é soberano e operativo. Está certo de que nós cooperamos com esta graça, mas somente após o trabalho divino inicial de redenção. E esse primeiro passo se dá com o batismo que se torna a porta por meio da qual o homem é inserido numa vida nova. Agostinho não negou que o homem caído tenha ainda vontade e que essa vontade é capaz de fazer escolhas. Discutiu que o homem caído tem ainda um livre-arbítrio (liberium arbitrium), mas perdeu sua liberdade moral (libertas). O estado do pecado original nos deixa na vil condição de sermos incapazes de nos abster do pecado. Nós podemos ainda escolher o que desejamos, mas nossos desejos restam acorrentados por nossos maus impulsos. Argumentou que a liberdade que resta na vontade conduz sempre ao pecado. Assim na carne nós estamos livres somente para pecar. É liberdade sem liberdade, uma escravidão moral real. A liberdade verdadeira pode somente vir do trabalho de Deus na nossa alma.Da ação de sua graça na vida de cada homem e de cada mulher. Conseqüentemente nós somos não somente em parte dependentes da graça para nossa conversão, mas totalmente dependentes da graça. Para Santo Agostinho, todos, inclusive os que nascem de um matrimônio de cristãos, devem ser regenerados pelo batismo, ao qual chama “banho de regeneração”, já que diferentemente dos pecados pessoais, o pecado original se contrai do pais: “…declararei, segundo a fé católica, que qualquer que seja o seu nascimento, [as crianças] são inocentes no que diz respeito aos pecados pessoais e culpadas em razão do pecado original”[4] Para o Santo, a heresia pelagiana é extremamente grave por negar às crianças o revestimento de Cristo.[5] Ele afirmava que: “Este nosso adversário, afastando-se da fé apostólica e católica com os pelagianos, quer que os que nascem estejam sob o domínio do diabo, para que as crianças não sejam levadas a Cristo, arrancadas do poder das trevas e levadas para o seu reino.[6] Desse modo, a questão só foi resolvida no Concílio de Cartago em 418. Neste foi publicados nove cânones que na prática visavam por um ponto final na questão de pois mais de oito anos de discussão.[7]
A questão sobre graça e justificação só viria para o centro das discussões com a Reforma Protestante e a Contra Reforma Católica. O propagador das polêmicas foi o monge agostiniano Martinho Lutero que começou a questionar a doutrina da Igreja referente às indulgências. Para Lutero a graça de Deus é maior do que os méritos humanos. Para Lutero “sola fides, sola gratia, sola scriptura” são suficientes para que o homem seja salvo. Segundo ele não adianta nenhuma espécie de prática religiosa ou espiritual que vise colocar o homem numa situação de justificação com Deus. Outra questão de Lutero dizia respeito ao fato de ele ter identificado o pecado original com a concupiscência. Para os católicos a culpa original é apagada com o batismo e junto com ela a concupiscência, para a ala protestante, mesmo com o Batismo, o homem continua marcado por tal culpa. “Para os protestantes, a concupiscência e a desordem das operações permanecem: o pecado permanece, portanto (manet actu). É o essencial. Com ela fica a realidade concreta do pecado original”.[8] Para a Igreja não. Com o Batismo é sepultado o pecado original. Ele assinala na vida do homem um estado de nova criatura. Na perspectiva de Trento a justificação do homem, manchada pelo pecado de Adão virá pela via sacramental que tem o poder de regenerar o homem assim como o faz o próprio batismo. Todo o decreto sobre a justificação vai girar em torno dessas questões. Mais do que focalizar o pecado original, o os decretos de Trento darão grande ênfase aos sacramentos e à sua definição.
[1] SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. História dos Dogmas tomo 4: A Palavra da Salvação. São Paulo: Loyola, 2006, p. 146.
[2] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph , p. 143-144.
[3] Cf. DI BERARDINO, Angelo.(org.) Dicionário de Patrística e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 1131.
[4] Contra Iulianum Pelagianum III, XXIII, 52.
[5] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. História dos Dogmas tomo 4: A Palavra da Salvação. São Paulo: Loyola, 2006, p. 144
[6] Contra Iulianum Pelagianum II, XVIII, 33).
[7] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. P. 158
[8] Ibidem p. 199

Nenhum comentário:

Postar um comentário