quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A problemática da liberdade

O tema da liberdade é hoje uma das grandes temáticas que leva, ou antes, deveria levar o homem pós-moderno a repensar e a reavaliar sua posição frente a esta complexa realidade que envolve diretamente o homem e a sua maneira de agir perante o mundo. Antes de se discorrer sobre o conceito Paulino de liberdade na Carta aos Gálatas faz-se mister compreender o que hoje se entende por liberdade, e descobrir como a mesma é vivida pelo homem pós-moderno. Para tal tarefa far-se-á neste capítulo primeiro uma análise conceitual da liberdade no contexto hodierno, passando brevemente por sua história, tentando perceber as evoluções do mesmo e suas implicações para a vida das pessoas no campo das relações. Em meio a uma realidade onde todas as ações dos indivíduos são movidas por um hedonismo e por um relativismo moral e ético sem precedentes, torna-se urgente uma reflexão que leve o homem pensar nesta realidade. Diante das variadas tendências e correntes de pensamento relativas a este tema, torna-se sempre mais urgente uma reorientação desta problemática na realidade humana. Diante de uma cultura que exalta cada vez mais o poder de decisão do indivíduo em detrimento das demais realidades que o cercam, torna-se sempre mais necessário uma reflexão séria sobre a questão da liberdade. não porque exista por parte do cristianismo uma ojeriza à cultura pós-moderna. Ao contrário. É pelo fato do cristianismo valorizar e exaltar o homem em sua realidade terrestre que ela procura sempre guiar a humanidade rumo a uma verdadeira experiência de liberdade salutar.
Vive-se hoje num mundo de perguntas, de incertezas. Ninguém tem segurança nas repostas a serem dadas. As mudanças são permanentes; o antigo, o tradicional parecem não mais servir para as novas gerações. O moderno se impõe. E bem se sabe que hoje este moderno também está em crise; falamos então do pós-moderno. Seja qual for a “era”, o certo é que vivemos num vazio; andamos aborrecidos; faz-se a experiência da ausência de sentido e normas; afunda-se num individualismo narcisista; todos são tomados por um niilismo, ou seja, por uma descrença absoluta frente à atual situação e sua hierarquia de valores, já que nada existiria de realmente absoluto. É nesse turbilhão de crise que a liberdade cristã é sacrificada.
Uma das características centrais da modernidade é a crença de que o Homem é, por seu raciocínio e suas livres decisões, capaz de chegar a proposições éticas válidas. Ele é melhor árbitro de sua vida do que quaisquer outras pessoas ou instituições. Não deve se submeter a nada que não seja sua convicção. Esta idéia é fundada na liberdade de consciência. Ela consiste não apenas em pensar qualquer coisa sem coação – mesmo porque os pensamentos são livres, até um ser humano vivendo sob opressão constante pode, a princípio, pensa o que quiser. Seu núcleo é a possibilidade de o homem reger sua conduta apenas segundo a sua convicção, segundo as regras que ele próprio definiu para si como valiosas e corretas. Mas isso, como dirá Paulo, não é liberdade, e sim, libertinagem. (cf. Gl 5, 13-14). Para ele a liberdade humana consiste numa vida de graça e de amor pelo seu semelhante. Para entender a novidade desta concepção de liberdade, é necessário contrastá-la com as anteriores, a saber, a liberdade como status, dos antigos gregos, e a liberdade como livre arbítrio, dos medievos. Em seguida, procede-se a uma breve notícia histórica da idéia de consciência; após, à noção de liberdade dela derivada e ao problema que ela traz; finalmente, ao estudo de uma solução proposta por Paulo na Carta aos Gálatas a este problema. Porque de fato chega a assustar o modo como no mundo contemporâneo o homem compreende e vive a liberdade. “(...) Os homens nunca tiveram um sentido de liberdade tão agudo como hoje, mas ao mesmo tempo aparecem novas formas de escravidão social e psíquica (...)” (GS n. 4). O laxismo parece ser a palavra de ordem. O indivíduo neste contexto vive uma falsa idéia de liberdade onde tudo está pautado nas suas livres e impensáveis decisões. Ele é o ponto de partida e a meta de chegada no campo das ações e das decisões. Pode-se afirmar ainda que este homem pós-moderno está inebriado e envenenado por uma engenhosa idéia de liberdade que só se encontra dentro dele mesmo. Parece ter perdido a dimensão da ressonância de suas ações na vida dos seus semelhantes. Em tal contexto a alteridade é totalmente excluída. Daí resulta a proposta de perceber na concepção paulina um sentido mais humano de liberdade. Fala-se em mais humano pelo fato de não querer fazer dessa realidade um puro ente de razão. A liberdade humana não poder ser compreendida senão mediante a sua cotidiana experiência de vida. Ela não é pura idéia, não é um conceito, uma abstração, não é uma gnose da qual o indivíduo se apropria. Antes de tudo a liberdade é expressão concreta na qual o ser humano manifesta e exercita a sua própria humanidade na relação amorosa com os seus semelhantes. E tudo isso, só se faz possível mediante uma profunda experiência de fé. Pensar a liberdade no mundo pós-moderno torna-se desse modo um desafio para aqueles que procuram se desvencilhar da atual compreensão que se tem. Mediante uma cultura que está totalmente voltada para o mundo do indivíduo, pensar a liberdade cristã torna-se uma grande tarefa para todos aqueles que querem de fato fazer uma verdadeira experiência de liberdade.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Resumo do conceito de Pessoa Segundo M. Moreno Villa

I. Esboço Histórico

Ao longo da história o ser humano buscou entender e compreender o ser pessoa e esta evolução se deu de forma gradual. Para alguns autores a palavra pessoa deriva da palavra grega prósôpon, que era a máscara usada pelos atores gregos sobre o rosto, adotando características de uma personagem. Outros sustentam que pode derivar do vocábulo phersu, palavra escrita no teto de um túmulo, no qual aparecem dois homens mascarados dançando, sendo esta uma variante da hipótese anterior.
O conceito de pessoa foi formulado pela primeira vez na reflexão teológica cristã ao pensar a fé Cristológica e Trinitária, sobretudo entre os séculos II – V. Foi usado também para explicar a dupla natureza (divina e humana) que existe na união hipostática da única indivisível pessoa de Cristo (Concílio de Nicéia, 325). Tertuliano distinguiu igualdade entre pessoa e substância, ao afirmar que Deus subsiste em três pessoas na única substância.
Na Grécia e em Roma, eram consideradas pessoas somente os cidadãos livres, sujeitos de pleno direitos e deveres. No entanto, essa liberdade era negada às mulheres, crianças e escravos. O que dá para demonstrar que o Homem (varão e mulher) e pessoa não eram sinônimos, pois, tanto as mulheres como os escravos e as crianças eram indivíduos do gênero humano (homens), mas não eram tidos como pessoas livres e com plenos direitos, dignos por si mesmos. Por isso, pessoa faz referencia direta à dignidade do Homem, à relação com outras pessoas e inclusive com a transcendência do próprio ser humano.
A filosofia grega desconhecia quase por completo a tematização sobre o homem como pessoa, conhecida em seu autentico valor ontológico e ético. Para os gregos, o homem era considerado um objeto individual, vinculado à noção de substância e, portanto, à de coisa.
O conceito de pessoa não pertence exclusivamente ao cristianismo, embora tenha recebido uma grande contribuição do pensamento cristão. Daí que alguns autores cristãos fossem persistentes em utilizar o termo pessoa para aplicá-lo ao mistério trinitário. Os primeiros cristãos foram aqueles que mais e melhor desenvolveram o conceito de pessoa (juntamente com o personalismo posterior). Isso graças à Revelação cristã que sustentou e sustenta o individuo: homem, mulher, criança, escravo, deficiente e etc, como chamados a serem filhos de Deus, isto é, filhos por adoção em virtude da graça revelada no Filho Unigênito, por natureza do Pai. O cristianismo sustentou desde o princípio que não existe hierarquia de dignidade no seio do humano, todos os seres humanos são por si mesmo pessoas dignas de sua condição e devem ser tratados como fins em si, como pessoas amadas por Deus e sendo convocadas da sua própria natureza.

II. A ambigüidade congênita do conceito “pessoa”

A temática da ambigüidade sobre o conceito de pessoa é ainda perceptível quando alguns autores fazem uso da expressão Homem, indivíduo, sujeito e “eu” sem nenhuma espécie de distinção, tornando-as expressões sinônimas. Perceber-se-á que apesar de tratarem da mesma realidade ontológica, cada termo destes possui uma especificidade e por isso não se pode encerrar o conceito de pessoa dentro dos mesmos.
a) Pessoa e indivíduo: a pessoa humana é, certamente, indivíduo, pois pertence a uma espécie e se diferencia dos demais indivíduos nas suas características peculiares: altura, cor, sexo etc. Mas um livro numa biblioteca também é indivíduo, pois a indivisibilidade e impredicabilidade, não é aplicável somente ao Homem, mas também a qualquer ser em relação a uma espécie já que se diz também do mundo vegetal e animal. Daí passa-se a afirmar que a pessoa não é simplesmente um indivíduo, ou seja, esta dispersão, esta dissolução da pessoa na matéria, este influxo no Homem da multiplicidade desordenada e impessoal da matéria, objetos, forças e influências nas quais o mesmo se move. Para o pai do personalismo, E. Mounier, esse individualismo “foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre os séculos XVIII e XIX”, que propugnou “um Homem abstrato, sem laços, nem comunidades naturais, Deus soberano no coração de uma liberdade sem direção nem medida, que desde o primeiro momento volta contra os outros a desconfiança, o calculismo e a reivindicação”.
b) Pessoa e sujeito: afirmar que a pessoa é sujeito, é sustentar que se auto possui, que subsiste em si e que se sabe subsistindo. O sujeito é em última análise, O eu pessoal enquanto sujeito. Mas o que não existe é sujeito isolado dos outros sujeitos, pois um sujeito não se reconhece como tal a não ser diante dos objetos, como afirmam os dualismos; não existe um sujeito puro e isolado dos objetos, pois ser sujeito implica naturalmente, estar sempre em correlação com o objeto a ponto de ser inseparáveis. Mas o Homem é também intersubjetividade e se auto percebe como subjetividade interpelada por outras subjetividades. O Homem é, pois no mundo, um intersujeito.
C) Pessoa e eu: a pessoa é também um eu (ego), e assim como Kant denominou, ela é a “unidade da percepção pura”. Mas nunca existe isolada dos demais eus. A pessoa não possui o fundamento em si mesma (Descartes), ela não é a causa de si mesma. Na sua eudade, a pessoa se autopercebe como pessoa, porque previamente à sua própria autoconcepção como eu, teve diante de si um tu, isto é, o outro eu; por isso a palavra eu sempre se encontra relacionada e jamais deixa de aludir a um tu. A pessoa é, no interior do criado, o único ser capaz da comunicação, o único capaz da exterioridade, de sair de si. Desse modo, ela, na sua eudade, é a única capaz de se direcionar ao outro numa comum inserção no mundo. A pessoa, enquanto eu entre vários eus, se dá na relação. Por isso, não podemos definir a pessoa somente como um eu, possuidora de si mesma e consciente de si. Ela é um eu não fechado em si, mas um ser em contínuo arrebatamento do tu e do outro.

III. A Pessoa, Definível?

A definição de pessoa não pode fechar-se no circulo de uma frase. “Uma expressão não pode encerrar em si uma realidade tão aberta e rica com a pessoa”. Mas, o fato de não querermos cair numa “esquematizadora” definição de o que é ou quem é a pessoa, implique numa realidade “indizível”, pois seria negar à pessoa todo tipo de essência.
A história do pensamento nos mostra que houve tentativas plausíveis de definir o quê, ou quem é estritamente a pessoa: para Boécio, a pessoa é substância, tentando assim, acentuar a racionalidade e a substancialidade da pessoa. Os limites dessa definição, por um lado, estão em deixar de lado características fundamentais da pessoa como a existência, a relação, a corporeidade, a historicidade... Por outro lado, essa definição não é válida para ser aplicada a Deus, pois segundo ela, cada pessoa é uma substância, com o que na trindade não havia três pessoas sem haver três deuses.
Ricardo de São Vitor, pensando da reflexão trinitária, definiu a pessoa como “existência incomunicável de natureza intelectual”, substituindo a substância Boeciana pela existência, donde se pode inferir tanto a relação com a consistência.
São Tomás, inspirando-se em Boécio, define a pessoa com subsistência. “Mas subsistência não tem tampouco significação unívoca”. De fato, São Tomás, indica que substância equivale etimologicamente a hipóstases e que significa umas vezes essência e outras subsistências.
Para E. Mounier, a pessoa é relação – ser. Ele afastando-se do substâncialismo Boeciano naquilo que tem de “cosificador” (a pessoa não é o quê, é um quem), aproxima-se da concepção de subsistência e independência no seu ser. “A pessoa é um ser espiritual constituído como um tal por uma forma de subsistência e de independência no seu ser; mantém esta subsistência com a adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados, assimilados e vividos em compromisso responsável”.
A descrição de pessoa dada por Mounier pode ser válida, mas para uma compreensão maior seria necessário acrescentar outros componentes básicos: a corporeidade, a condição sexual, a historicidade, a sociabilidade, a mortalidade...

IV. A pessoa não é problema é mistério

A pessoa humana, dentro de sua complexidade está buscando sempre se auto compreender como um ser em relação com o mundo e com o outro. Dentro dessa relação é que o Homem se percebe como um mistério, ou seja, uma realidade totalmente difícil de ser explicada, o que não significa ser ele um problema sem solução. A pessoa não tem uma solução, por isso devemos concebê-la na sua espiritualidade como um ser misterioso. Ela se dá em um mistério que nunca iremos dar por descoberto, pois, a cada descoberta se abrirão novos caminhos para se conhecer.
O saber jamais poderá ser completo nem sobre mim, e nem sobre o outro, pois a pessoa é uma via longa que conhecemos e nunca completamos o conhecimento, pois o ser humano é uma realidade que resiste a ser completamente apreendido. Para conhecer o outro deve-se conhecer a si próprio. Só conhecemos a subjetividade do outro quando nos lançamos dentro de nós mesmos.

V. A pessoa é eudade e transcendência

O encontro é o que favorece a pessoa se descobrir como tal o seu próximo. A liberdade das pessoas é o que possibilita o encontro entre elas.
A dignidade e liberdade são elementos desse verdadeiro encontro. A condição que gera igualdade favorece a ação de encontrar-se. O menor número de pessoas, em geral, favorece uma relação mais intima, enquanto que a grande multidão não favorece.
O viver fechado não faz parte do ser pessoa. Na interioridade ela é chamada a uma tensão transcendente. O homem na sua personalidade nunca é um ser isolado, todo que se encontrar com o outro vão se encontrando e assim cada pessoa vai se descobrindo como um eu. O ser humano é um ser inteligível não busca conhecer somente a sua realidade de humanidade, mais também, a sua própria história humana.

VI. Nem Solipsismo Nem alterismo
Na filosofia da subjetividade Ocidental moderna, a pessoa foi reduzida a sujeito e a um eu. Porém, o sujeito não é somente subjetividade e eudade, mas a pessoa é, transcendência e alteridade. O Solipsismo é alteridade ou exterioridade. Para o filosofo Lévinas, o início de qualquer pensamento acerca do homem, sendo esta relação com o outro é sempre ético, não se pode considerar o outro como objeto de conhecimento, mas como um ser digno em si mesmo e perante o qual sempre somos responsáveis. A melhor antítese de Descartes é, então, Lévinas, onde Descarte dizia; “eu”; e Lévinas dizia: “o outro”. Mas entre a tese do primado da subjetividade (Descartes) e a antítese da primazia da alteridade (Lévinas), parece-nos necessário realizar uma síntese: as duas posições parecem ser radicalizações de uma verdade. O homem é alteridade, Lévinas acentua tanto o primado metafísico do outro, que termina por diminuir o sujeito (o eu) a ponto de quase eliminar. Lévinas incorre no erro do alterismo. Por isso, se pode afirmar que nem Solipsismo e alterismo, mas subjetividade e alteridade estão ambos simultaneamente no círculo ontológico interpessoal.

VII. O Homem como pessoa.

O homem na interioridade, ele se autopercebe não somente como individuo do gênero humano, mas com autonomia moral, liberdade e racionalidade. Ele é um ser que pode escolher entre o bem e o mal, ele tem essa liberdade de tomar suas decisões.
Exterior de alteridade. O homem, como pessoa, se autopercebe como saindo da sua interioridade para o mundo do outro, é a relação rumo a outras pessoas. Pois são “sub-jeitos” e “eus”, que se autopossuem e podem se comunicar. As pessoas estão em constante comunicação, seja, na através da cultura, da religião ou outros aspectos.
O exterior de coisidade. A pessoa histórica é essencialmente um ser no mundo. Mas com as coisas, a pessoa propriamente não se relaciona, não existe estrita-relação, pois delas não pode receber respostas, pois não são sujeitos, mas unicamente objetos que estão somente vertidos para fora, despossuídos de si, somente são percebidos por um sujeito pessoal. Por isso, com pessoas há relação e com as coisas, referência.
O homem e a Transcendência. A pessoa percebe a si mesma como não possuindo em si a causa do seu existir último; deve a sua existência, assim como todos os seres, a um ser primeiro que é o Deus Criador e Senhor de todas as coisas. Porém, durante a história percebemos algumas críticas a esse Senhor de tudo, e como a religião fala de Deus, as criticas eram direcionadas a religião. Como o filosofo, Marx, dizia que a religião é uma neurose da humanidade, já Freud dizia; que ela é a concretização do anelo de transcendência que todo homem descobre em si. Em qualquer caso, em toda relação transcendental imanente (própria das pessoas humanas), está incoada a relação transcendental absolutamente transcendental, a que vincula cada um ao mistério da sua origem. O homem é pessoa, o seu vir a ser pessoa depende só de Deus. O seu vir a ser como uma pessoa é uma tarefa a ele confiada e que depende de muitas condições sociais. A pessoa é, finalmente, tensão entre o que se deve ser, isso quer dizer, qualquer escolha que a pessoa fizer, irá sempre encontrar o outro. E se a pessoa quer chegar a ser, ela deve dá conta das suas potencialidades, e quando a pessoa se espera chegar a ser, para ela compreender esse mistério do ser, ela irá precisar sempre das pessoas como do Outro Absoluto, que é o Transcendente, o Criador de tudo, o Senhor por excelência. Tudo isso, convergem na unicidade da pessoa.

Resumo do livro de Teoria do Conhecimento de Johannes Hessen

1. A essência do conhecimento

Ao enveredar pelo caminho da filosofia, a primeira e grande questão que pode surgir é a de saber qual a essência da filosofia. Sendo que a teoria do conhecimento é uma disciplina que pertence ao corpo da filosofia, ela deve também se questionar pela essência.
Muitos filósofos ao longo da história deram suas definições referentes à questão como Platão, Aristóteles, os estóicos, epicuristas e Wolff. Cada um desses deu sua definição sobre a essência da filosofia, mas segundo J. Hessen essas diversas definições geraram divergências que obstruíram a chegada a uma verdadeira definição. “Só chegaremos a tal definição se nos voltarmos para o próprio fato histórico da filosofia”[1] é o fato histórico que nos fornece o material com o qual se pode obter o conceito de essência da filosofia. E esse fato pode ser dado a partir dos grandes sistemas filosóficos que moveram o mundo (Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz, Kant e Hegel). O que marcas esses sistemas é o seu caráter de totalidade e universalidade. Isso embasa a atividade do filósofo: a buscar pelo conhecer e pelo saber. São os sistemas, afirma Hessen, que fornecem aos filósofos os instrumentos necessários para ele chegar a essência da filosofia: atitude em relação à totalidade dos objetos; o caráter racional, cognoscitivo dessa atitude. Com isso chega-se a um conceito de essência da filosofia, que ainda é, por demais puramente formal. A riqueza do conteúdo desse conceito está quando consideramos os sistemas dentro do seu contexto histórico.
Ao longo da história, cada filósofo impostou à filosofia um conceito de essência que dizia respeito ao seu tempo e a sua história. J. Hessen parte de Sócrates para fazer esse perfil histórico. E de fato, segundo ele, Sócrates pode ser considerado uma referência nessa perspectiva. Nele a filosofia ganha uma nova direção. Seus questionamentos e suas inquietações aguçam o espírito humano à busca do conhecimento não apenas do mundo, mas de seu próprio eu. Platão e Aristóteles e todos os pós-socráticos inovarão a partir da nova conjuntura. E todos darão grande contribuição para a filosofia na busca de um conceito de essência. Platão centrará suas reflexões nos mais altos valores teóricos e práticos, os valores do verdadeiro, do belo e do bom; Aristóteles dará á filosofia a conotação de ciência primeira (que depois viria a ser chamada de Metafísica); em Cícero a filosofia aparecerá como “Mestra da vida”. E assim o autor vai seguindo todo percurso histórico passando pela Idade Média, Moderna e Contemporânea. Ele conclui essa primeira colocação e afirma que “a filosofia é a tentativa do espírito humano de atingir uma visão do mundo, mediante a auto-reflexão sobre suas funções valorativas teóricas e práticas”[2] Para Hessen, esse fato aproxima a filosofia da ciência enquanto ambas discorrem sobre o pensamento e o conhecimento humano. Contudo, a filosofia se difere da ciência tendo em vista o seu campo e o seu modo de atuação. A ciência cuida do particular e a filosofia é a ciência da universalidade dos seres e dos entes. Ela perscruta pela essência do mundo, enquanto que a ciência contenta-se com o aparente e experimentável. Mas além possuir relevância em relação à ciência, o Hessen ainda difere a filosofia da arte e da religião. E essa diferença, segundo ele, reside no modo como esses dois domínios da cultura discursarão sobre seu objeto de estudo. J. Hessen conclui dizendo que “a filosofia tem uma face voltada para a religião, para a ciência e para a arte. Com a religião e a arte tem em comum o olhar dirigido à totalidade do real; com a ciência tem em comum o caráter teórico”[3]

2. A posição da teoria do conhecimento no sistema da filosofia


Para J. Hessen é claro o lugar da teoria do conhecimento no sistema da filosofia: ela é uma parte da teoria da ciência. Ele a define como teoria material da ciência ou como teoria dos princípios materiais do conhecimento humano.

3. A história da teoria do conhecimento

Apesar do espírito humano manifestar sua inquietação pela realidade fenomênica do mundo desde a Grécia antiga, para Hessen só podemos falar de teoria do conhecimento como disciplina sistematizada e independente a partir da idade moderna. E seu passo inicial foi dado pelo empirista inglês John Locke, considerado fundador da mesma. É em uma obra de Locke (An essay concerning human understanding) de 1690 que pela primeira vez se tratou de modo sistemático as questões referentes à origem, à essência e à certeza do conhecimento humano. E a partir daí a teoria do conhecimento enquanto reflexão nessa perspectiva ganhou o mundo com Leibniz, G. Berkeley, Kant, Fichte, Schelling, Hegel e outros.

Teoria Geral do conhecimento
Investigação fenomenológica preliminar:
O fenômeno do conhecimento humano e os problemas nele contido

Toda a problemática da teoria do conhecimento parte sempre da relação entre sujeito e objeto como elementos fundantes do conhecimento humano e de sua elaboração. Segundo J. Hessen no ato do conhecimento defrontam-se consciência e objeto, sujeito e objeto. O conhecimento, portanto, é a relação de um com o outro; e a apreensão de um pelo outro. É importante também lembrar da separação entre sujeito e objeto nessa relação. Parece contraditório, mas não é. Hessen explica. Mesmo havendo relação entre ambos, existe uma autonomia de um para com o outro. Percebe-se uma dialética de reciprocidade. Para Hessen “há uma transcendência do objeto na esfera do sujeito correspondendo à transcendência do sujeito na esfera do objeto. Na relação o objeto é o determinante, o sujeito o determinado. Daí o conhecimento ser definido como uma determinação do sujeito pelo objeto”[4]
J. Hessen divide, no plano do conhecimento, os objetos entre reais e ideais. Ele chama de reais ou efetivos aqueles que se dão a conhecer pela experiência externa ou interna ou são inferidos a partir dela. Os ideais aparecem como irreais meramente pensados. Exemplo destes são as estruturas matemáticas, os números, as figuras geométricas etc.
Dentro dessa relação entre sujeito e objeto surge a essência do conhecimento: o conceito de verdade. E ela é justamente a concordância da “figura com o objeto”. Portanto, a verdade diz respeito à correlação entre conteúdo e objeto intencionado. Para Hessen, esse conceito de verdade é “ingênuo”. E ele afirma que “não basta que um conhecimento seja verdadeiro. Devemos também chegar à certeza de que o seja”[5]. Isso é o que ele chama de critério de verdade.
E por ultimo Hessen nos fala de três esferas distintas que caracterizam o conhecimento humano nas suas diversas relações: Sujeito, imagem e objeto. Pelo sujeito o fenômeno do conhecimento se configura a uma esfera psicológica, porque é o sujeito que toma partido sobre o objeto; pela imagem o fenômeno assume uma dimensão lógica, pois a imagem do objeto no sujeito é uma estrutura lógica e, enquanto tal, objeto da lógica; e por ultimo o objeto e sua dimensão ontológica. O objeto defronta-se com a consciência cognoscente enquanto algo que é, quer se trate de um ser real ou ideal.[6]

I. Possibilidade do conhecimento

1. O Dogmatismo

O Dogmatismo é uma posição epistemológica para a qual o problema do conhecimento não chega a ser levantado. Este já é dado pelo próprio objeto. A expressão dogma exprime isso: doutrina estabelecida. Portanto, para o dogmático não existe problema para o conhecimento, tendo em vista que na relação entre sujeito e objeto tudo já está estabelecido pelo objeto.

2. O Ceticismo

É uma corrente que se torna antagônica ao dogmatismo. A palavra que dá origem ao termo ceticismo é a expressão grega Sképtesthai, considerar, examinar. Enquanto o dogmático se centra no objeto e dele estabelece a verdade do conhecimento, o cético centraliza seu olhar no sujeito e coloca neste o critério de verdade para o conhecimento, já afirmando a impossibilidade de conhecimento. “O conhecimento como apreensão efetiva do objeto seria, segundo ele, impossível. Por isso, não podemos fazer juízo algum, ao contrário, devemos nos abster de toda e qualquer formulação de juízos”[7]. Esse é o ceticismo extremo de Pirro de Elis (360-270 a.C) e acabaria por cair em enormes contradições. Negar a possibilidade de conhecer é negar ao homem algo de essencial na sua dinamicidade, a capacidade de conhecer o mundo. Mas existe também o ceticismo médio de Arcesilau e Carnéades de um conhecimento verossimilhante à verdade. Na filosofia moderna o ceticismo entrou com Montaigne (ceticismo ético); Hume (ceticismo metafísico) e com Descartes que proclamou os direitos da dúvida metódica, criando o ceticismo metódico e não de princípio[8].

3. O Subjetivismo e o relativismo

O ceticismo no fim negou a verdade. O dogmatismo o absolutizou; o subjetivismo e o relativismo se aproximam do ceticismo ao proporem a não existência de verdades universais. Não existe, segundo essa concepção verdade universalmente válida e apreendida por todos. O subjetivismo coloca no sujeito a referência para o conhecimento. É o sujeito que determina e avalia o critério de valor dos juízos. O relativismo vai nessa linha, contudo, não se limita aos elementos internos ao sujeito. O relativismo leva em conta os fatores externo que interferem no conhecimento (a história, a cultura etc). A expressão máxima dessa corrente se encontra nos sofistas que a traduzem na expressão: “O homem é a medida de todas as coisas”.
O subjetivismo e o relativismo padecem de contradições semelhantes às do ceticismo a o negarem a existência de uma verdade universal válida para todos. No fundo, como afirma Hessen, subjetivismo e relativismo são ceticismos, pois negam também a verdade, não diretamente, mas indiretamente, na medida em que contestam sua validade universal.[9]

4. Pragmatismo

Essa corrente foi fundada pelo americano William James (+ 1910). Sua tese geral é que o homem é um ser prático dotado de vontades, ativo e não um ser pensante teórico. O pragmatismo focaliza na teoria do conhecimento a praticidade do pensamento humano. “A verdade do conhecimento consiste, portanto na concordância do pensamento com os objetivos práticos do homem – naquilo, portanto, que provar ser útil e benéfico para sua conduta prática.[10]
Hessen cita Nietzsche como um dos maiores defensores do pragmatismo na Alemanha. Este defendia a filosofia como valor prático para a vida. “A verdade não é um valor teórico, mas uma expressão para a utilidade, para a função do juízo que é conservadora de vida e servidora da vontade de poder”.[11] Para Hessen o erro fundamental dessa corrente é o desprezo pela esfera lógica, que significa negar o próprio valor e autonomia do pensamento humano. Seu êxito foi a conexão entre pensamento e aplicação na vida.

5. Criticismo

Para Hessen, o criticismo seria o meio termo entre pragmatismo e ceticismo. “Ele compartilha com o dogmatismo uma confiança axiomática na razão humana; está convencido de que o conhecimento é possível e de que a verdade existe; e do ceticismo compartilha uma desconfiança com relação a qualquer conhecimento determinado”.[12] O Criticismo se comporta como “inquisidor”; ao mesmo tempo que reconhece a existência do conhecimento, questiona e avalia a validade dos seus juízos. O criticismo funciona como elemento necessário no desenvolvimento do conhecimento humano. Hessen fala do criticismo na Antiguidade com Platão e Aristóteles e também os estóicos; na Idade Moderna com Descartes, Leibniz, locke, Hume e Sobretudo com Kant, considerado o fundador do criticismo.

II. A origem do conhecimento

A partir desse ponto, J. Hessen discorrerá sobre o modo como se dá o conhecimento, explicitando as principais vias por onde o homem pode conhecer.


1. O Racionalismo

A tese central do racionalismo é que todo conhecimento reside na razão. O pensamento está acima de qualquer outra forma de conhecimento. Segundo o racionalismo, um conhecimento só merece esse nome se for necessário e tiver validade universal. Portanto, no racionalismo, é a razão que julga e avalia o conhecimento. É o pensamento, portanto, a verdadeira fonte e fundamento do conhecimento humano.
O racionalismo tem seus germes já em Platão que desenvolveu a tese sobre o mundo das idéias em oposição ao mundo sensível. Mas será com Descartes e leibniz que o racionalismo atingirá seu cume. Poderíamos resumir o racionalismo na expressão: “Não existe nada nos sentidos que não tenha passado pelo intelecto”.

2. Empirismo

O nome em si já nos dá pistas. Concentra a possibilidade de conhecimento na “empeiria”, experiência. O empirismo é o lado extremo do racionalismo. “Nada existe no intelecto que não tenha passado pela experiência”.
John Locke é considerado o fundador do empirismo e combate fortemente a doutrina das idéias inatas (de Descartes). David Hume dará continuidade ao empirismo de Locke. O empirismo, portanto, concentra toda a condição do conhecer humano a partir da experiência do mundo e dos objetos.

3. Intelectualismo

O intelectualismo seria a tentativa de síntese entre o racionalismo e o empirismo. O intelectualismo, na elaboração do conhecimento considera que ambas as formas contribuem na elaboração do conhecimento. Segundo o intelectualismo, a consciência cognoscente lê na experiência, retira seus conceitos da experiência. Aqui retoma-se a expressão citada no empirismo, só que com um acréscimo: o pensamento não se encontra vazio, não é uma tabua rasa, como dissera Locke. O intelectualismo tira da experiência o necessário para a elaboração de suas idéias, mas nunca se encontra em estado de ausência de dados.
Aristóteles foi o filósofo que consegui elaborar uma boa síntese entre racionalismo e empirismo equilibrando assim as duas tendências. Ele consegue unir realidades opostas numa nova elaboração para o conhecimento.

4. Apriorismo

O apriorismo é uma outra forma de tentar sintetizar racionalismo e empirismo. Segundo o apriorismo, nosso conhecimento apresenta, como o nome dessa tendência já diz, elementos que são a priori, livres da experiência. O princípio que governa essa tendência é: “Conceitos sem intuições são vazios; intuições sem conceitos são cegas”.[13]
Kant é o grande fundador do apriorismo. Para J. Hessen, toda a sua filosofia foi a mediação entre o racionalismo de Leibniz e Wolff e o empirismo de Locke e Hume. Para Kant o material do conhecimento provém da experiência; aqui o apriorismo se aproxima do empirismo; enquanto a forma provém do pensamento, aqui está na linha do racionalismo.[14]

5. Posicionamento crítico

Neste ultimo ponto, Hessen faz uma síntese entre os diversos posicionamentos epistemológicos, mostrando o campo de atuação de cada um deles. Ele ressalta o fato que essas correntes epistemológicas não devem viver em constante estado de confronto. O conhecimento humano não pode prescindir das faculdades que o constituem. Razão e experiência são na verdade dois lados de uma mesma moeda. O posicionamento crítico frente a teoria do conhecimento é perceber as diversas facetas como o mesmo pode se dar. A teoria do conhecimento não deve partir o homem entre pensamento e experiência tal como fizera Descartes. A própria complexidade do homem e do mundo exigem a unidade de ambas as dimensões para a construção de verdadeiro conhecimento.

III. A Essência do conhecimento
Soluções pré-metafísicas

Para descobrir a essência do conhecimento partiremos de dois princípios que ajudam na busca de compreensão da realidade epistemológica.

a) O Objetivismo

O objeto determina o sujeito e este deve se ajustar ao mesmo. Nessa relação o sujeito é passivo, e a realidade do objeto é um dado para a consciência do homem. Para o objetivismo, os objetos são dados, apresentando uma estrutura totalmente definida que será reconstruída pela consciência do cognoscente.
Platão e o seu mundo das idéias se configuram na primeira formulação do objetivismo. Para ele as idéias são realidades objetivamente dadas. E. Husserl reavivou o pensamento platônico na contemporaneidade. A novidade de Husserl são as essências eidéticas de que ele falará como fundamento da realidade.

b) O Subjetivismo

O subjetivismo coloca no sujeito a referência do conhecimento. Desloca o mundo das idéias, essa encarnação dos princípios do conhecimento, para o sujeito o conhecimento deixa, portanto, de habitar num plano de idéias para fazer morada no próprio sujeito. O característico do conhecimento já não mais consiste numa focalização do mundo objetivo, mas num voltar-se para aquele sujeito supremo.
Agostinho é o primeiro a fazer essa inversão do plano objetivo para o plano subjetivo.

2. Soluções metafísicas do problema

a) O realismo

O realismo parte do pressuposto epistemológico segundo o qual existem coisas reais, independentes da consciência humana. Hessen fala de três tipos de realismos: o realismo ingênuo, aquele que não faz nenhuma reflexão epistemológica; o realismo natural, este está condicionado por reflexões críticas epistêmicas; o realismo crítico recebe este nome por apoiar-se em reflexões crítico-epistêmicas. Essas três formas de realismo são encontradas na filosofia antiga com Demócrito e Aristóteles. Na modernidade o realismo revive com Galileu, Descartes, Hobbes e John Locke. Hessen faz diversas reflexões quanto a variação dos tipos de realismos. Ele conclui dizendo que apesar dessas variações d realismo, a tese central permanece a mesma: há objetos reais independentes da consciência.

c) O idealismo

Este constitui a antítese do realismo. Existe o idealismo metafísico que se distingue do idealismo epistemológico. Hessen chama de idealismo metafísico a concepção de que a realidade está baseada em forças espirituais, em poderes ideais. O idealismo epistemológico é a concepção de que não há objetos reais independentes da consciência. O autor ainda fala do idealismo subjetivo ou psicológico, que afirma estar toda realidade na consciência do sujeito. Berkeley encabeça essa tendência. Para ele o ser das coisas consiste em serem percebidas pelo sujeito. O idealismo objetivo ou lógico se difere do psicológico. Este toma como ponto de partida a consciência objetiva da ciência, tal como se expressa nas obras científicas. Para o idealismo lógico o objeto não é um ser real, nem um ser de consciência, mas um ser lógico-ideal. Ao reduzir toda a realidade a algo de natureza lógica, o idealismo lógico é chamado de panlogismo. É representado hoje pelo neokantismo, especialmente pela escola de Marburgo.

d) Fenomenalismo

É a teoria de que não conhecemos as coisas como elas são, mas apenas como se nos apresentam. Devem existir coisas reais, mas nós não conseguimos captar a sua essência. Como afirmava Kant, no fenomenalismo, nós só chegamos ao fenômeno, mas nunca ao noumeno da realidade ou da coisa. O fenomenalismo, portanto, acompanha o realismo na suposição das coisas reais, mas acompanha o idealismo na limitação do conhecimento à realidade dada na consciência, ao mundo das aparências, do que resulta a incognoscibilidade das coisas.

d) Posicionamento crítico

Segundo Hessen, realismo e idealismo não se anulam. Ambos caminham paralelos sem necessidade de confronto. Contudo, o perigo do idealismo consiste e encarcerá o homem num mundo inteiramente intelectual, enquanto que o realismo pode amarrar o homem ao plano da horizontalidade epistemológica, lhe negando a dimensão espiritual.

3. Soluções teológicas do problema

a) A solução monista-panteísta do problema

Na tentativa de solucionar o problema sujeito-objeto, na perspectiva do conhecimento humano, para Hessen pode-se também retroceder ao absoluto, ao princípio ultimo da realidade e tentar a partir daí trilhar um outro caminho epistemológico. Segundo essa corrente, sujeito e objeto, pensamento e ser, consciência e objeto são apenas aparentemente uma dualidade, na verdade eles são uma unidade.
Espinosa é o pai dessa perspectiva. No centro do seu sistema reside a idéia de substância. É dessa substância que provêm toda a realidade. O mundo e os objetos assim como o próprio homem são extensões dessa substancia.
b) A solução dualista-teísta

Essa concepção de pensamento sustenta a diferença metafísica essencial entre sujeito e objeto, pensamento e ser. É certo, porém, que não considera essa duplicidade como última. Sujeito e objeto, pensamento e ser descendem, no final das contas, de um princípio comum. Esse princípio é a divindade. Ela é fonte comum da idealidade e da realidade, do pensamento e do ser. Como causa criadora do universo, Deus coordena de modo os reinos ideal e real que ambos concordam entre si, existindo numa harmonia entre pensamento e ser.

IV. Os tipos de conhecimento
1. O Problema da intuição e sua história

Depois de ter visto diversas facetas que explicam o conhecimento humano a partir das relações comum dentro da ciência (evidência do objeto e apreensão do sujeito) chega-se aquilo que Hessen chama de problema da intuição. E por quê problema? Nem sempre é clara essa relação imediata do sujeito com a realidade do objeto. O autor não duvida da existência desse tipo de conhecimento. Tudo aquilo que nos é dado na experiência interna ou externa é imediatamente apreendido pelo sujeito. Quando, porém, se fala de intuição, não se pensa em intuições desse tipo (relacionadas ao sujeito e as coisas que estas lhe externam), mas numa intuição não-sensível, espiritual. Portanto, para Hessen, tanto o dado imediato de que parte o nosso conhecimento quanto os princípios últimos que constituem seu fundamento são apreendidos de modo imediato, intuitivo. Desse modo, o autor discorre sobre a história da filosofia elencando os pensadores que deram origem a essa concepção. São eles Platão, Plotino, Agostinho, T. Aquino, Descartes, Fichte, Schopenhauer, Bérgson e Dilthey etc.

2. O correto e o incorreto no intuicionismo

No campo teórico a intuição não pode reclamar o direito de ser um meio de conhecimento autônomo emparelhado ao conhecimento racional-discursivo. Nesse campo, o intelecto está com a palavra final. Mas no campo prático as coisas mudam. A intuição possui, nesse terreno, uma importância autônoma. Diz Hessen: “enquanto seres sentem e querem, a intuição é, para nós, o verdadeiro órgão do conhecimento”. Contudo, não se pode querer colocar a intuição como modelo para o conhecimento e nem tão pouco rejeitá-la. Como diz Hessen, não caiamos no erro de Kant que apoiou o conhecimento sobre a sensação e o pensamento. É preciso que se perceba a possibilidade do conhecimento se dar fora dessas fontes tradicionais. Não se pode reduzir o homem ser aberto ao absoluto, e muito menos negar-lhes o exercício de suas capacidades espirituais. É por meio da intuição que o homem muitas vezes chega a patamares do conhecimento que nenhuma outra via o poderia conduzir. Não se pode adotar a intuição como critério para a teoria do conhecimento, mas não se pode negar a sua eficácia nesse processo.

V. Critério de verdade

O critério de verdade diz respeito a veracidade que na ciência o homem aplica ao mundo do conhecimento. O critério da verdade é o limiar por onde anda a teoria do conhecimento. Porém antes de o fazer, iniciaremos essa questão sobre a verdade partindo do conceito.

1. O conceito de verdade

O conceito de verdade está relacionado ao relação entre o pensamento e o objeto. Se aquilo que o sujeito pensa tem relação com a coisa pensada essa é a verdade aplicada. A verdade é, portanto, a concordância do pensamento com a coisa (verdade transcendente) e consigo mesmo (conceito de verdade imanente). Sendo assim, o conceito de verdade se aplica nessas duas circunstâncias, ou seja, ora ela refere-se ao conteúdo pensado com o objeto ora se relaciona com o pensamento mesmo. Portanto, dentro dessa concepção o critério da verdade não se resume apenas ao objeto, mas à compreensão do próprio pensamento do indivíduo.

2. O critério de verdade

Um dos elementos que discernem no critério de verdade é a ausência de contradição entre ser e pensamento, ou seja, não pode haver disparidades entre os juízos que são emitidos sobre as realidades objetivas. Esse é o clássico conceito de verdade advindo dos primórdios da filosofia. Mas para Hessen esse critério não é válido ao tratarmos de objetos ideais. E para isso, segundo ele, é necessário recorrer a outros critérios porque o critério tradicional (adequação do pensamento a coisa pensada) é levado em consideração com objetos reais, com as realidades objetivas mas existe outro plano que faz-se necessário também o critério de verdade . O conceito de verdade, portanto, se aplica a dois planos: aos objetos e aos pensamentos. No segundo critério a verdade questiona sobre a validade do seu próprio juízo. Seria um juízo do juízo. Talvez esse segundo critério seja mais complexo dentro dessa ótica.

2ª Teoria especial do conhecimento

As categorias

Na segunda parte da obra, J. Hessen abordará as questões especiais da teoria do conhecimento. Aqui ele entrará nos temas das categorias, da substância e de suas múltiplas relações.
A teoria especial do conhecimento, portanto, investiga e trata dos conceitos primitivos mais gerais com que tratamos definir os objetos. Esses conceitos supremos chamam-se categorias, por isso a teoria especial é essencialmente uma teoria das categorias. E enquanto teoria das categorias, a teoria especial do conhecimento manterá uma estreita relação com a metafísica e com a ontologia.
As categorias são formas do ser, determinações dos objetos, são formas do pensamento, determinações do pensamento. Elas são elementos do pensamento puro, funções lógicas fundamentais. Eles dirão respeito sobre tudo sobre as modalidades do ser. Elas não passam de determinações puras do pensamento. A essência das categorias é, portanto, dar ao ser o seu qualificativo especial, procurar por aquelas qualidades que o determinam e regem. Portanto, as categorias são predicações do ser.
O primeiro a organizara as categorias foi Aristóteles. Ele é a referência para a história da filosofia. Foi ele o primeiro a definir dez categorias para o ser. São elas: substância, quantidade, qualidades, relação, lugar, tempo, posição, estado, ação e paixão. Dessas dez categorias o destaque é a substância. No fundo, segundo Hessen, ela não passa de um sujeito substantivo; as outras nove são predicados possíveis. Somente da substância subsiste em relação às outras. Ela subsiste por si mesma. As nove categorias restantes são como que acidentes do ser. No decorrer da história da filosofia outros filósofos como Kant, Hartman, Windelbrand deram nova roupagem as categorias. Contudo, como vimos, a base está em Aristóteles. É ele que define as principais estruturas no sistema das categorias e na sua relação com o conhecimento humano.





















Bibliografia

HESSEN, J. Teoria do Conhecimento: tradução João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
[1] HESSEN, J. Teoria do Conhecimento: tradução João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 4.
[2] Ibidem p. 9
[3] Ibidem p. 12
[4] Ibidem p. 21
[5] Ibidem P. 23
[6] Ibidem p. 25
[7] Ibidem p. 31
[8] Ibidem p. 33
[9] Ibidem p. 38
[10] Ibidem p. 40
[11] Ibidem
[12] Ibidem p. 43
[13] Ibidem p. 62
[14] Ibidem p. 63-64

A filosofia: uma invenção dos gregos

“Uma vida sem buscas não merece ser vivida” (Sócrates)

Existe um cosenso entre os estudiosos e pesquisadores referentes a este problema. Para uma parte deles, a filosofia teria sido criada de fato pelos gregos. Seus germes estariam na mitologia, passando por figuras lendárias como o poeta Homero, as grandes teogonias e os grandes mitos de criação até chegar em seu período áureo com os chamados expoentes da filosofia na Grécia. Sendo assim, ao se falar do surgimento da filosofia deve ter em mente de que filosofia está se falando e quais os elementos definidores e balizadores da mesma. Portanto, segundo o pesquisador italiano Giovane Reale, o gênio grego se dá pela sistematização desse conhecimento dito filosófico. Este pensador faz parte de um considerável grupo que afirma categoricamente não haver nenhum traço semelhante entre a filosofia grega e o pensamento oriental. Estes pensadores afirmam serem ambos campos totalmente diferentes, mesmo se percebendo muitas semelhanças entre alguns filósofos gregos como Sócrates, Diógenes e figuras orientais como Buda, Confúcio etc. Veja o que diz Reale/Antiseri (2003, p. 4):
A filosofia foi criação do gênio helênico: não derivou aos gregos a partir de estímulos precisos tomados das civilizações orientais; do Oriente, porém, vieram alguns conhecimentos científicos, astronômicos e matemático-geométricos, que o grego soube repensar e recriar em dimensão teórica, enquanto que os orientais os concebiam em sentido prevalentemente prático.


Pode-se inferir que a categoria grega de pensamento ganha um destaque pela forma de abordar a realidade e pela tentativa de sistematizar o pensamento. Pense-se, por exemplo, em Aristóteles com o seu Organon.[1] Desse modo, o gênio grego se define não apenas pelos seus desejos de conhecimento, comum a todos os demais povos tanto do oriente quanto do ocidente, mas pela sua organização das idéias e pela sua aplicação á vida na polis.
A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que a filosofia é uma invenção grega não pelo fato dos mesmos a terem criado, e sim pela constatação de sua organicidade e de sua sistematização. Não se pode negar a presença de filosofias nos povos orientais. É claro que a orientação deles era diferente. Desenvolviam uma filosofia que se desenrolava no plano prático da vida, enquanto que os gregos teorizavam as questões existenciais. Pense também nos grandes diálogos de Platão, na vasta obra de Aristóteles. Estes homens construíram grandes estruturas de pensamento da realidade que influenciaram todo o ocidente e oriente. Quando se fala aqui de sistemas filosóficos, quer se compreender uma filosofia que tenta abranger todos os aspectos da realidade humana (Deus, mundo, Homem). É de fato este, o grande tripé que norteia não apenas a filosofia, mas também as demais ciências. Por exemplo, Platão e Aristóteles são considerados os filósofos da síntese. E isso em vista de eles terem resumido e fundido toda a especualçao dos filósofos da chamada filosofia da physis.[2] A filosofia da natureza caracterizará o primeiro momento do pensamento filosófico na Grécia. Neste período destcar-se-ão nomes como os de Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Empédocles, Parmênides etc.
Por que na Grécia?

Essa é também uma das perguntas que paira na cabeça de muitos estudiosos em busca das origens da filosofia ocidental. É de fato curiosa esta pergunta porque em relação aos demais povos do mundo antigo, os gregos são posteriores aos fenícios, aos egípcios e aos mesopotâmicos. Então porque na Grécia?
E na busca de pistas que orientem a compreensão, seguir-se-á o velho mestre Geovani Reale, percebendo os fatores que possibilitaram o nascimento do pensamento na Grécia.
A filosofia nasce na Grécia num contexto em que as condições econômicas, políticas e sociais a favoreceram, ou seja, a estabilidade das Cidades gregas e das suas demais colônias serviram de pano de fundo para o alvorecer de uma nova era para o mundo. Um aspecto curioso e que chama a atenção nesse processo de formação da filosofia grega é que suas colônias (Mileto, Êfeso, Jônia), só posteriromente é que a filosofia desembocaria em Atenas. Portanto, o que se percebe é que os homens começam a pensar por motivo daquilo que se pode chamar de um ócio criativo. Nenhuma nação pode pensar ou teorizar a realidade procurando princípios unificadores da realidade quando se encontra em guerrras constantes ou quando seu povo passa por desafios políticos e econômicos. Para Reale/Antiseri são estes os fatores externos que possibilitaram o surgimento de um pensamento sistemático e organizado. Quanto aos fatores externos, já fora citado acima alguns. Vale apena relembrar. A cultura grega sempre foi marcada desde as suas origens pelas influências da mitologia e dos famosos poemas de Homero e Hesíodo, além disso, as mitologias embalavam e determinavam as explicações plausíveis perante a realidade. Isso foi determianante para uam posterior evolução do pensamento. Além disso a religião grega também deu suas contribuições para que depois houvesse um amadurecimento da filosofia. Vale lembrar que as duas forma de religião na Grecia (a pública e a órfica)[3] sempre gozou da ausência de dogmas fixos e vinculantes em sentido absoluto, de textos sagrados revelados e de intérpretes eguadiões desta revelação. Desse modo, a liberdade religiosa veio a favorecer a liberdade de pensamento.
Os primeiros especuladores da realidade

É interessante notar que o traço característico dos primeiros filósofos gregos será a incessante busca pelo princípio originário de todas as coisas. A isto eles davam o nome de Arché (expressão grega que significa princípio, origem). A partir dessa busca, dar-se-á início ao ato do filosofar. Os homens passam nesta primeira fase
[1] O Organon, que significa orgão, é uma grande obra de Aristóteles na qual o estagirita oferece ao leitor os princípios e as bases organizadoras do pensamento. Este texto ensina ao leitor como pensar o próprio pensamento por meio do reto uso e articulação dos silogismos, das proposições, das premissas etc. em síntese a obra ensina como estruturar as próprias idéias em suas categorias mentais.
[2] Designa-se por filosofia da physis o primeiro momento da filosofia grega marcada por uma especulação estritamente naturalista. Nesta primeira fase, chamada por Geovani Reale de primeira navegação, os filósofos empreendiam um rigoroso processo de especualçao do mundo procurando encontrar aquilo que eles chamavam de Arché (princípios) por meio da observação dos elementos físicos do mundo. Daí se originou a palavra phisis, do grego natureza.
[3] A religião pública era inspirada no poeta Homero e esta considerava os deuses como forças naturais ampliadas na dimensão do divino; já a religião órfica vê o homem como uma dualidade: copor e alma. A alma imortal, concebida como demônio, que por uma culpa originária foi condenada a viver em um corpo, passa a ser prisioneira deste. Para eles o corpo é cárcere da alma. Daqui resulta o dulismo da filosofia grega.

O tema da sabedoria na carta de Paulo aos Coríntios

A primeira seção da carta aos Coríntios, que compreende os quatro primeiros capítulos se insere num contexto de polêmicas geradas por divisões e escândalos dentro da comunidade fundada por Paulo. Existiam aqueles que se diziam pertencer ao grupo de Apolo, um grande pregador, existiam aqueles que se diziam ser do grupo de Paulo e ainda outros que se diziam ser de Pedro e por ultimo os do grupo de Cristo.[1] Entre as diversas questões, surge aquela que diz respeito à presença dos chamados sábios. Eram aqueles que procuravam esvaziar o sentido da cruz. A luta de Paulo será travada contra aqueles que procuram por meio de discursos filosóficos e retóricos negarem a sabedoria de Deus presente no evento da cruz de Cristo. “Pois não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria humana da linguagem, a fim de que não se torne inútil à cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam é poder de Deus”. (1 Cr 1, 17-20). A sabedoria deste mundo faz com que os que a possuem se creiam sábios, enquanto são tolos. Estas alusões à sabedoria da linguagem (cf. 1 Cr 1, 17.20; 2, 1.4.6) levam a pensar que o tipo de sabedoria condenada por Paulo seja aquele de tipo retórico e filosófico. Não se pode perder do horizonte de entendimento o contexto não apenas da carta aos Coríntios, mas dos próprios Coríntios e as diversas influências recebidas das correntes filosóficas que naquele tempo circulam não apenas a Grécia, mas todo o Império Romano. Além disso o mundo está sob o impulso do helenismo que se espalhou por todos os lugares. Sendo Corinto uma cidade grega portuária, marcada pela afluência de povos de diversos lugares, era comum que todas as influências de filosofias como o estoicismo, o epicurismo e entre outras, adentrasse às comunidades cristãs. É a partir desse contexto no qual se situava Corinto que pode-se compreender as polêmicas daí surgidas.
Pode-se desse modo pensar que as investidas de Paulo nesta primeira parte da carta sejam realmente dirigidas a esses retóricos. E contra eles, “Paulo define a verdadeira sabedoria cristã: é Cristo, e Cristo pregado na cruz (cf. 1Cr 1,18-2,2). Segundo Paulo, esta é a sabedoria de Deus, que para o mundo é loucura e que confunde a própria sabedoria do mundo”.[2] A grande sabedoria de Deus não reside nos discursos eloqüentes elaborados pelos grandes oradores. (cf. 1 Cr 1,24). A sabedoria de Deus é, portanto, revelação, inatingível pela busca humana. Ela não precisa da persuasão dos retóricos (1 Cr 2,4). É a revelação da sabedoria oculta o desígnio secreto de Deus, do seu plano de salvação para a humanidade por meio de Cristo crucificado (1 Cr 2, 7-10).[3] “Ora, é absurdo tentar brilhar pregando o Evangelho, pois a mensagem cristã é exatamente o contrário de um discurso sábio, que permite àquele que a anuncia auto valorizar-se”.[4] Sendo assim, aqueles que neste mundo se consideram sábios, devem se tornar estultos e ignorantes para a adquirirem a sabedoria de Deus, tendo em vista que aquilo que o mundo considera sabedoria é loucura para Deus. (cf. 1 Cr 3, 18ss). Na pessoa de Cristo acha-se escondido todos os tesouros da sabedoria de Deus (Cl 2,3).
A pregação cristã não pode hoje se esquivar diante dos desafios que o mundo pós-moderno imprime. Para se falar desse texto Paulino se faz necessário recorrer ao mesmo espírito com que ele enfrentou a questão em sua comunidade. Seu modo de compreender a sabedoria de Deus continua servindo de parâmetro para a pregação cristã. O grande perigo hoje seria perder de vista essa referência que Paulo oferece.
A fé cristã não pode ser confundida com discursos retóricos ou filosóficos. Não se chega a conhecer ou a experimentar a sabedoria de Deus por meio de belas construções retóricas. Hoje se vive no mundo, em algumas instâncias da sociedade um clima de hostilidade para com a fé. Surgem muitos filósofos que procuram destruir a fé por meio de discursos que tentam convencer as pessoas. Muitas Universidades e Faculdades se tornaram palcos onde “ditos sábios” procuram mobilizar a fé. Para estes, a cruz de Cristo continuará a ser motivo de escândalos justamente por nela está escondida à sabedoria divina. A palavra da Igreja deve sempre levar em consideração este mistério divino revelado no improvável. Não sejam esquecidas as palavras de Jesus: “Eu te louvo ò Pai do céu porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos”. Talvez a grande tentação da Igreja seja a de se tender a cair no mesmo erro destes “sábios do mundo” e procurar refutá-los com as mesmas estratégias. Porém o discurso da Igreja não deve partir desta hipótese. O mistério de Deus revelado aos homens não pode tornar-se alvo de dissecação por aqueles que se consideram dotados de sabedoria. A sabedoria de Deus está acima de todas essas frágeis possibilidades humanas. Assim como o apóstolo Paulo, a Igreja deve impostar o seu discurso sobre a sabedoria retomando o kerigma como seu pressuposto fundamental. A verdadeira sabedoria do mundo é o logos de Deus, Aquele que habita no meio dos homens e os convida ao convívio com Deus. É na aparente ilogicidade do mistério que ao homem é manifestado o verdadeiro conhecimento divino. “A séculos de distância de Paulo, nós vemos que na história venceu a Cruz e não a sabedoria que se opõe à Cruz. O Crucifixo é sabedoria, porque manifesta verdadeiramente quem é Deus, ou seja, poder de amor que chega até à Cruz para salvar o homem. Deus serve-se de modos e de instrumentos que para nós, à primeira vista, parecem debilidade. O Crucifixo releva, por um lado, a debilidade do homem e, por outro, o verdadeiro poder de Deus, ou seja, a gratuidade do amor: precisamente esta total gratuidade do amor é a verdadeira sabedoria. São Paulo fez esta experiência até na sua carne, e disto dá-nos testemunho em várias fases do seu percurso espiritual (...)”. [5]

[1] QUESNEL. Michel. As Epístolas aos Coríntios. São Paulo: Paulinas 1983. p 27-28
[2] MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2003. p 814-815.
[3] Ibidem
[4] QUESNEL. Michel. As Epístolas aos Coríntios p. 30
[5] Discurso do Papa Bento XVI sobre o Ano Paulino, Sala Paulo VI, Quarta-feira, 29 de Outubro de 2008.

Graça e pecado original: as disputas de Agostinho contra os pelagianos

No século V, Pelágio havia debatido ferozmente com Santo Agostinho sobre este assunto. A polêmica se prolongou nas questões acerca da graça e da liberdade, colocadas more pelagiano, isto é, uma defronte a outra. A controvérsia entre Agostinho e Pelágio, se resumia em dois pontos teológicos: a liberdade [capacidade] da vontade humana (livre arbítrio), e na maneira como Deus opera sua graça. Quanto ao livre arbítrio, a discussão era se o ser humano é absolutamente capaz de exercer a sua liberdade, ou não. Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes de Adão. Pelágio, contudo negava tal contaminação, e afirmava a inocência da alma, como também a absoluta capacidade de escolha tanto moral, quanto espiritual. A conclusão de Pelágio era clara. O homem é capaz de salvar-se por meio de seus próprios méritos. Desse modo, ele desprezava o papel da graça e negava o pecado original. “Para os pelagianos, o pecado original não era uma propagação, mas somente a imitação de um mau exemplo”.[1] Sua dedução era lógica: se não temos pecado origina, porque o pecado de Adão afetou apenas ele, não necessitamos da graça de Deus.[2]
Para Agostinho, a graça é auxílio da liberdade e não o seu rival como pensava e queria Pelágio.[3] Santo Agostinho, que escreveu um documento contra o pelagianismo, afirmava que o pecado original de Adão foi herdado por toda a humanidade e que, mesmo que o homem caído retenha a habilidade para escolher, ele está escravizado ao pecado e não pode não pecar, muito embora com sua luta e com a Graça de Deus ele possa minimizar seus pecados. A visão de Agostinho da queda foi oposta tanto ao Pelagianismo como ao semi-pelagianismo. Ele disse que a humanidade é uma massa peccati, uma “corja de pecado”, incapaz de levantar-se da morte espiritual. Para Agostinho o homem não pode mais mover ou inclinar a si mesmo a Deus tanto quanto um copo vazio pode se encher. Para ele o trabalho inicial da graça divina pelo qual a alma é liberta da escravidão do pecado é soberano e operativo. Está certo de que nós cooperamos com esta graça, mas somente após o trabalho divino inicial de redenção. E esse primeiro passo se dá com o batismo que se torna a porta por meio da qual o homem é inserido numa vida nova. Agostinho não negou que o homem caído tenha ainda vontade e que essa vontade é capaz de fazer escolhas. Discutiu que o homem caído tem ainda um livre-arbítrio (liberium arbitrium), mas perdeu sua liberdade moral (libertas). O estado do pecado original nos deixa na vil condição de sermos incapazes de nos abster do pecado. Nós podemos ainda escolher o que desejamos, mas nossos desejos restam acorrentados por nossos maus impulsos. Argumentou que a liberdade que resta na vontade conduz sempre ao pecado. Assim na carne nós estamos livres somente para pecar. É liberdade sem liberdade, uma escravidão moral real. A liberdade verdadeira pode somente vir do trabalho de Deus na nossa alma.Da ação de sua graça na vida de cada homem e de cada mulher. Conseqüentemente nós somos não somente em parte dependentes da graça para nossa conversão, mas totalmente dependentes da graça. Para Santo Agostinho, todos, inclusive os que nascem de um matrimônio de cristãos, devem ser regenerados pelo batismo, ao qual chama “banho de regeneração”, já que diferentemente dos pecados pessoais, o pecado original se contrai do pais: “…declararei, segundo a fé católica, que qualquer que seja o seu nascimento, [as crianças] são inocentes no que diz respeito aos pecados pessoais e culpadas em razão do pecado original”[4] Para o Santo, a heresia pelagiana é extremamente grave por negar às crianças o revestimento de Cristo.[5] Ele afirmava que: “Este nosso adversário, afastando-se da fé apostólica e católica com os pelagianos, quer que os que nascem estejam sob o domínio do diabo, para que as crianças não sejam levadas a Cristo, arrancadas do poder das trevas e levadas para o seu reino.[6] Desse modo, a questão só foi resolvida no Concílio de Cartago em 418. Neste foi publicados nove cânones que na prática visavam por um ponto final na questão de pois mais de oito anos de discussão.[7]
A questão sobre graça e justificação só viria para o centro das discussões com a Reforma Protestante e a Contra Reforma Católica. O propagador das polêmicas foi o monge agostiniano Martinho Lutero que começou a questionar a doutrina da Igreja referente às indulgências. Para Lutero a graça de Deus é maior do que os méritos humanos. Para Lutero “sola fides, sola gratia, sola scriptura” são suficientes para que o homem seja salvo. Segundo ele não adianta nenhuma espécie de prática religiosa ou espiritual que vise colocar o homem numa situação de justificação com Deus. Outra questão de Lutero dizia respeito ao fato de ele ter identificado o pecado original com a concupiscência. Para os católicos a culpa original é apagada com o batismo e junto com ela a concupiscência, para a ala protestante, mesmo com o Batismo, o homem continua marcado por tal culpa. “Para os protestantes, a concupiscência e a desordem das operações permanecem: o pecado permanece, portanto (manet actu). É o essencial. Com ela fica a realidade concreta do pecado original”.[8] Para a Igreja não. Com o Batismo é sepultado o pecado original. Ele assinala na vida do homem um estado de nova criatura. Na perspectiva de Trento a justificação do homem, manchada pelo pecado de Adão virá pela via sacramental que tem o poder de regenerar o homem assim como o faz o próprio batismo. Todo o decreto sobre a justificação vai girar em torno dessas questões. Mais do que focalizar o pecado original, o os decretos de Trento darão grande ênfase aos sacramentos e à sua definição.
[1] SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. História dos Dogmas tomo 4: A Palavra da Salvação. São Paulo: Loyola, 2006, p. 146.
[2] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph , p. 143-144.
[3] Cf. DI BERARDINO, Angelo.(org.) Dicionário de Patrística e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 1131.
[4] Contra Iulianum Pelagianum III, XXIII, 52.
[5] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. História dos Dogmas tomo 4: A Palavra da Salvação. São Paulo: Loyola, 2006, p. 144
[6] Contra Iulianum Pelagianum II, XVIII, 33).
[7] Cf. SESBOÜÉ, Bernard; THEOBALD, Christoph. P. 158
[8] Ibidem p. 199

O homem como Transcendência e ao mesmo tempo responsabilidade e liberdade segundo Karl Rahner

A fenomenologia transcendental é parte abundantemente comentada na teologia de Karl Rahner. Devido a sua ligação ao Cristão anônimo tanto na receptividade ao conceito de Deus quanto na própria salvação dele, Rahner investe boa parte de seus escritos tentando, filosoficamente, analisar o fato de que em todas as etnias se constata o fenômeno da busca pelo transcendente. A escolha desse nome veio devido ao esforço filosófico de Rahner em mostrar que o ser humano é por natureza espírito. E é espírito que procura superar seus próprios limites e condicionamentos históricos; é ser de abertura ao totalmente outro. A ‘Reflexão Transcendental’ foi um instrumento filosófico nas mãos de Rahner usado para dizer que os seres humanos estão abertos para receber a revelação. Segundo Rahner, todos os seres humanos estão voltados para a transcendentalidade. “Onde quer o homem se experimenta em sua transcendência como interrogante, como inquietado por esse surgir do ser, como posto inefável, não pode conceber-se como sujeito no sentido de sujeito absoluto, mas somente no sentido de alguém que recebe o ser e, em última instância, graça. ‘Graça’ no presente referência, significa a liberdade de que o homem faz experiência em sua finitude e contingência, e significa também que o denominamos graça em sentido teológico mais restrito”.[1] Essa é uma das categorias que constituem o ser humano. É algo inerente ao ser humano voltar-se para o mistério da criação e da imanência. Por causa disso, todos transcendem a si mesmos e a natureza todas as vezes que pensam e questionam os fatos. Segundo Stanley J. Grenz e Roger F. Olson.[2], “demonstrar essa afirmação de modo filosófico foi a grande tarefa de Rahner, aquela que consumiu grande parte de sua energia teológica”. Desse modo, se percebe que Rahner tem como fundamento e objetivo para a sua reflexão evidenciar no ser humano esse seu caráter de transcendentalidade, sem, contudo, encerrá-lo numa perspectiva puramente vertical da realidade. “O homem, porém, enquanto ser pessoal que goza de transcendência e liberdade, é ao mesmo tempo um ser inserido no mundo, no tempo e na história”.[3] Daí que não se pode afirmar que em Rahner se encontra um puro transcendentalismo ou verticalismo. Essas dimensões (transcendentalidade e liberdade/responsabilidade “visam considera-lo como o resultante e o ponto de intersecção entre realidades que, por um lado, ocorrem no sei da experiência empírica, mas que, por outro lado, o estabelecem e determinam em sua realidade e, sendo assim, também o explicam”. [4] A grandeza seu pensamento é a harmoniosa relação entre transcendência e liberdade. “Enquanto o homem por sua transcendência se encontra em abertura total, é também responsável por si mesmo. Está entregue a si não só quando conhece, mas também quando age [...] Essa ação livre não ocorre somente nas profundezas ocultas das pessoas, fora do mundo e da história. Não obstante, a liberdade propriamente dita do homem continua sendo uma, pois constitui peculiaridade transcendental do sujeito uno como tal”.[5] Ele não usurpa do homem o seu status de ser livre e pessoal. A relação com a graça de Deus que abarca o homem em sua totalidade não pode, segundo Rahner, suprimir ou sufocar a sua liberdade. “uma relação pessoal com Deus, uma história da salvação genuinamente dialógica entre Deus e o homem, o acolhimento de sua salvação única e eterna, o conceito de responsabilidade do homem perante Deus e seu julgamento, todas essas afirmações do cristianismo, ainda que devam ser interpretadas com maior precisão, implicam que o homem é o que aqui queremos dizer: ele é pessoa e sujeito”.[6] Rahner preocupou-se em chamar a atenção à importância da ânsia do ser humano em transcender os limites da natureza humana, de ir além[7]. Os seres humanos estão cônscios de um sentido de terem sido feitos para mais do que agora são, ou seja, de que há mais além do mundo visível, um mundo, uma realidade que transcende. Embora essa percepção esteja inerente em todo ser humano graças ao existencial sobrenatural, a Revelação Cristã é a única, segundo Rahner, capaz de suprir explicações corretas quanto a esse mais. Rahner, em sua teologia antropocêntrica vai tentar provar que, todos os seres humanos são receptivos a Deus e só encontram realização pessoal no relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo como Salvador. Segundo Rahner, essa receptividade natural do homem a Deus é devido ao existente sobrenatural que há em todos os seres humanos, a graça.


[1] RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989. p 49
[2] GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. Teologia do século 20. São Paulo: Cultura Cristã, 2003. p. 290.
[3] RAHNER, Karl. 1989 p.55
[4] Ibidem p 40
[5] Ibidem pp 50-53
[6] Ibidem p. 39
[7] MCGRATH, Alister E. Historical theology: an introduction to the history of Christian thought. Oxford: Blackwell Publishers, 1998. p. 336

fé e razão em Santo Agostinho

Agostinho é considerado um dos maiores pensadores do cristianismo. Ele fora o primeiro intelectual cristão que possibilitou uma síntese entre fé e razão. Para ele, a fé havia recebido da razão toda a clareza necessária para a sua autocompreensão, ao passo que a razão havia ganhado estímulo e impulso da fé. Havia chegado o momento de diálogo entre a fé a inteligência humana, por séculos desprezado por muitos padres da Igreja, sobretudo nos primeiros séculos onde se encontram filosofia helenística e cristianismo.
Para que melhor se conheça a grandeza e a profundidade da sentenção agostiniana, faz-se mister conhecer os elementos que influenciaram na construção de seu pensamento. Somente situando e contextualizando suas experiências torna-se possível chegar às raízes de sua síntese.
É interessante perceber que Agostinho situa-se na passagem do mundo greco-romano para a Idade Média, cujo valor preponderante é o cristianismo. De certo modo, ele próprio representa essa passagem. Alimentou-se dos resquícios da cultura helênica para depois, converter-se à fé cristã. Ao romper com o passsado, introduzindo uma noção de Deus alheia à filosofia de até então, Agostinho o faz de um modo que caracteriza uma certa continuidade da tradição filosófica.[1]
No período anterior à sua conversão ele teve contato com as obras de Cícero, as categorias de Aristóteles e foi arrastado pelos maniqueístas.[2] Depois recebeu uma forte imfluência do neoplatonismo de Plotino. Sendo assim, por muito tempo Agostinho trilhou pelos caminhos dessas diversas tendências filosóficas do seu tempo. Após a decisiva influência do Bispo Santo Ambrósio, ele passaria a novos horizontes que indicariam o caminho da fé. A experiência da fé tornou-se a substância de vida e de pensamento. Esimulado e comprovado pela fé, seu pensamento adquiriu nova estatura e nova essência. “Nascia o filosofar-na-fé, nascia a filosofia cristã, amplarmente preparada pelos padres gregos, mas que só iria chegar ao perfeito amadurecimento com Agostinho”.[3]
O que se constata é que a história de vida de Agostinho, juntamente com todas as suas experiências de vida foram determinantes para a sua maturidade intelectual e espiritual. Rompendo com uma antiga cisão entre fé e razão, típica dos padres antigos, com exceção de uns poucos, ele fez a ponte de ligação entre essas duas formas de manifestações do conhecimento humano, ou seja, a compreensão como forma de crer e o crer como forma de compreender. No seu tempo havia se tornado emblemática a expressão de Tertuliano (155-220) que traduzia esse clima de tensão entre a fé e razão: “Creio porque é absurdo”. Em Agostinho encontra-se a síntese perfeita entre essas duas modalidades de conhecimento humano. Para ele o homem crer porque compreende e compreende porque crer.
Na perpectiva de Reale “a solução de Agostinho é um círculo hermenêutico. Este significa que todo conhecimento pressupõe pré-conhecimentos apreendidos por outro caminho, que podem depois ser confirmados, desmentidos e modificados. A fé é, portanto um pré-conhecimento em relação à razão, mas a razão depois pode e deve transpor criticamente as verdades de fé”.[4]
Para Agostinho a fé não substitui e muito menos elimina a inteligência. Não se trata de realidades antagônicas, mas convergentes. Em sua perspectiva a fé estimula e promove a razão. Para ele, a fé se traduz como um modo de pensar com assentimento por parte daquele que pensa. O homem pensa e ao fazer fazê-lo se debruça naquilo que stá pensando. Sem o pensamento não haveria fé. Ainda que as verdades da fé não sejam demonstráveis, isto é, passíveis de prova, é possível demonstrar o acerto de se crer nelas, e essa tarefa cabe à razão. E pode-se dizer o mesmo em relação à razão. Ela não elimina a fé, mas ao contrário, fortalece-a e ambas se complementam. O homem não pode crê em alguma coisa desprovido de um conhecimento daquilo que o faz crer; do mesmo modo ele não pode pensar sem crer naquilo em que se crê. A máxima agostiniana leva o homem a ver o mundo dentro dessas duas realidades que se entrecruzam. Não se pode separar essas duas vertentes do conhecimento. “O homem olha para o que é verdadeiro tanto com a fé como com a inteligência”.[5] Assim, a verdade só pode ser assegurada por algo que se coloque acima dos homens e das coisas: Deus. Se a razão, na busca de sua certeza depara com a fé em Deus, é também a fé que permite resgatar a dignidade da razão. E desse modo, nessa mútua relação, tanto a fé como a razão vai guiando o homem ao caminho da verdade.



[1]Cf. ABRÂO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 99.
[2] Os maniqueístas eram membros de uma seita fundada pelo sábio persa Mani (215-275) e que tinha como fundamento a crença de que existem dois princípios que regeriam o mundo: o bem e o mal.
[3] REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia V. 2. São Paulo: Paulus, 2003, p. 88.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem

A Teologia da Esperança em Jürgen Moltmann

Moltmann afirma que por muito tempo a escatologia era a doutrina das últimas coisas ou a doutrina do éschaton. A compreensão da expressão últimas coisas englobava eventos, sobre o mundo, a história e a humanidade, que irromperiam no fim dos tempos. Entre esses acontecimentos estavam à volta de Cristo em Glória, o juízo universal e a consumação do reino, a ressurreição universal dos mortos e a nova criação de todas as coisas. Mas como esses acontecimentos foram adiados até o último dia, eles, no decorrer da história, perderam sua significação orientadora, animadora e crítica para os tempos vividos antes do fim. Enquanto a fé cristã separava de sua vida diária a esperança do futuro, esperança essa que a sustentara no princípio, e transferia o futuro para o além ou para a eternidade - apesar de os textos bíblicos que ela transmitia regurgitar a esperança messiânica futura para a terra - , a esperança aos poucos abandonou a igreja e reiteradamente se voltou contra ela nas formas mais deturpadas possíveis. Escatologia é idêntica à doutrina da esperança cristã, que abrange tanto aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto. Para Moltmann o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice, ele é perspectiva, e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação, e transformação do presente. O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tinge tudo o que existe. O cristianismo é em sua essência movido por essa tensão entre realidade presente e mundo futuro. O cristão vive orientado nesta dupla perspectiva. Ao mesmo tempo em que atua neste mundo em meio a todas as suas discrepâncias, está sempre perscrutando um novo destino apontado por Cristo. A teologia correta deve ser pensada a partir de sua meta futura e da relação entre evangelho e promessa. Uma doutrina sobre as últimas coisas não pode existir, se com doutrina se entende uma coleção de afirmações doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que podem ser repetidas e feitas por todos. A escatologia cristã não fala do futuro de modo geral. Esta realidade só pode ser entendida no plano de Deus. Ela toma seu ponto de partida em uma determinada realidade histórica e prediz o futuro da mesma, suas possibilidades futuras e sua eficácia futura. A escatologia cristã fala de Jesus e de seu futuro. Conhece a realidade da ressurreição de Jesus e anuncia o futuro do ressuscitado. A ressurreição de Cristo é a chave hermenêutica para toda a compreensão da escatologia cristã. Neste evento é apontado para o homem não apenas o seu sentido, mas o sentido de toda história humana. Por isso, para ela, a fundamentação de todas as afirmações sobre o futuro na pessoa e na história de Jesus Cristo é a pedra de toque para todos os espíritos escatológicos. A maneira como a teologia cristã fala sobre Cristo não pode ser a do Logos grego ou a das afirmações doutrinárias a partir das experiências, mas a das sentenças e afirmações da esperança e das promessas do futuro. As afirmações esperançosas da promessa se antecipam ao futuro. Em Cristo esse futuro do homem é antecipado por meio do evento da ressurreição. Cruz e ressurreição formam o binômio no qual a história humana alicerça sua esperança. Na promessa, que se deu a partir de Abraão, está anunciado o futuro oculto, o qual, por meio da esperança que desperta, age no presente. As afirmações doutrinárias encontram sua verdade na correspondência, verificável, com a realidade presente e experimentável. As afirmações da esperança estão necessariamente em contradição com a realidade presente e experimentável. Elas não resultam de experiências, mas constituem uma condição para que sejam possíveis novas experiências. Não pretendem iluminar a realidade que aí está, mas a realidade que virá. Presente e futuro, experiências e esperança se contradizem na escatologia cristã, de modo que, por meio dela, o ser humano não chega à correspondência e à harmonia como o presente, mas é impelido para o conflito entre esperança e experiência. A esperança cristã é uma esperança de ressurreição e demonstra sua verdade pela contradição entre o presente e o futuro por ela visualizado, futuro de justiça contra o pecado, de vida contra a morte, de glória contra o sofrimento, de paz contra a divisão. Desse modo, toda a compreensão da escatologia cristã está fundamentada no evento Cristo. Nele são encerradas todas as questões referentes ao destino último do homem e ao mundo.

A esperança cristã

Esquema sobre a Spe Salvi do Papa Bento XVI.

A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho (SS nº 1). A esperança cristã se constituiu a partir da encarnação de Cristo uma realidade palpável da qual todo o ser humano pode tocar. Enfrentar a contingência da realidade em sua totalidades faz parte dessa relação com Cristo-esperança. Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só « informativa », mas « performativa ». Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera fatos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova (SS nº 2). É muito salutar quando partimos da experiência dos apóstolos e de todos aqueles que tiveram a experiência de encontro com Cristo. Cristo falava da realidade humana não por meio de fatos que escapassem da realidade do homem. Suas palavras automaticamente tocavam no intimo das pessoas. Daí multidões extasiadas que iam ao seu encontro. A esperança que Cristo nos oferece parte de uma realidade substancial que é o próprio Cristo. [...] a sociedade presente é reconhecida pelos cristãos como uma sociedade imprópria; eles pertencem a uma sociedade nova, rumo à qual caminham e que, na sua peregrinação, é antecipada (SS nº 4). Não é objetivo do Papa Bento XVI criar nos cristãos uma aversão pelo mundo ou pelas realidades temporais. Acreditamos que essa mentalidade já está superada. E isso aconteceu há mais de dois mil anos com a encarnação de Cristo quando Deus rompe com esta barreira e faz de Cristo o elo entre realidade temporal e realidade espiritual. Mas o cristão vive neste mundo sem fazer do mesmo sua morada eterna. Nesta idéia reside a nossa fraqueza. Quando nos encarceramos num plano horizontal da existência matamos nossa intrínseca transcendental idade. Deus nos criou desde sempre para a eternidade. Por isso é que somos peregrinos neste mundo. Estamos a caminho da Jerusalém celeste, o reino definitivo. Mas enquanto isso não chega, aguardamos a parusia de Cristo onde tudo de consumará. [...] o Evangelho traz a verdade que os filósofos peregrinos tinham buscado em vão. Nesta imagem, que sucessivamente por um longo período havia de perdurar na arte dos sarcófagos, torna-se evidente aquilo que tanto as pessoas cultas como as simples encontravam em Cristo: Ele diz-nos quem é na realidade o homem e o que ele deve fazer para ser verdadeiramente homem (SS nº 6). Cristo não fez de sua vida um jogo de aforismas dedicados aos temas da existência humana. Isso era típico dos sábios, dos filósofos. Ele viveu na sua historicidade aquilo que desenvolvia em sua pregação. Ele não fala do que é a vida, do que é a esperança, do que é a eternidade. Ao contrário, ele se coloca como vida, como esperança e como eternidade para todos aqueles que nele crerem. A certeza de que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanha e com o seu « bastão e o seu cajado me conforta », de modo que « não devo temer nenhum mal » (cf. Sal 23[22],4): esta era a nova « esperança » que surgia na vida dos crentes (SS nº 6). Cristo é o caminho e a única possibilidade de esperança para todo aquele que crer. Ele nunca deixa sozinho aquele que nele colocar toda a sua confiança, toda a sua esperança. A fé não é só uma inclinação da pessoa para realidades que hão-de vir, mas estão ainda totalmente ausentes; ela dá-nos algo. Dá-nos já agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nós uma « prova » das coisas que ainda não se vêem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro « ainda-não ». O facto de este futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentes e as presentes nas futuras (SS nº 7).Cristo é já a garantia dessas realidades vindouras. Ele é como afirmara L. Boff a esperança certeza de salvação e de vida para a humanidade. A fé confere à vida uma nova base, um novo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamento habitual, ou seja a confiança na riqueza material, relativiza-se. Cria-se uma nova liberdade diante deste fundamento da vida que só aparentemente é capaz de sustentar, embora o seu significado normal não seja certamente negado com isso. Esta nova liberdade, a consciência da nova « substância » que nos foi dada, ficou patente no martírio, quando as pessoas se opuseram à prepotência da ideologia e dos seus órgãos políticos e, com a sua morte, renovaram o mundo (SS nº 8). [...] que em Cristo, Deus manifestou-Se. Comunicou-nos já a « substância » das coisas futuras, e assim a espera de Deus adquire uma nova certeza. É espera das coisas futuras a partir de um dom já presente. É espera – na presença de Cristo, isto é, com Cristo presente – que se completa no seu Corpo, na perspectiva da sua vinda definitiva (SS nº 9). Mas, viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável. É isto precisamente que diz, por exemplo, o Padre da Igreja Ambrósio na sua elegia pelo irmão defunto Sátiro: « Sem dúvida, a morte não fazia parte da natureza, mas tornou-se natural; porque Deus não instituiu a morte ao princípio, mas deu-a como remédio (SS nº 10). A morte serve na experiência humana como o despertar para a verdadeira vida. A existência é fatigosa e a vida eterna não se resume á dimensão temporal. A morte não é apenas remédio, mas acima de tudo é caminho de vida plena, porque somente passando por ela o indivíduo chega ao seu destino etrno. Com efeito, para Bacon, resulta claro que os descobrimentos e as recentes invenções são apenas um começo e que, graças à sinergia entre ciência e prática, seguir-se-ão descobertas completamente novas, surgirá um mundo totalmente novo, o reino do homem SS nº 17). Eis aí o mito do progresso científico que caiu por terra já há muitos anos. Já o Papa Paulo VI havia alertado para tais questões na sua Encíclica Populorum Progressio afirmando que todo humanismo sem Deus acaba gerando ateísmo. Talvez tenha sido esse o erro de Bacon e dos modernos e iluministas ao acharem que deslocando Deus do centro da história resolveriam com suas próprias mãos os desafios da humanidade. Eles esqueceram que o pecado original é parte constitutiva do gênero humano e que enquanto Cristo não restaura todas as coisas estaremos sujeitos a concupiscência no mundo. Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas (SS nº 20). Nenhum sistema político, por mais justo que se apresente ou aparente ser, servirá de mágica para os traumas da humanidade. Todas as vezes que se tentou fazer dessa idéia uma máxima na história, surgiram os grandes conflitos. O homem não pode se arvorar de uma realidade que pertence a Deus. O homem deve trabalhar para transformar o mundo, mas sempre tendo em vista que pela força de Deus que essa transformação ocorrerá. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de facto, o homem não é só o produto de condições econômicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições econômicas favoráveis (SS nº 22). Os sonhos de Marx eram teoricamente muito bons, porém, muito ingênuos. O comunismo russo foi de fato a comprovação desta tese. Hoje pode-se dizer, depois da trágica experiência, que de fato o homem se engana e se equivoca quando age centrando a ação em suas próprias forças. A intenção pode até ser positiva, mas os frutos são catastróficos. Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo (SS nº 22). Ciência e razão devem como já afirmara o Papa João Paulo II as duas asas que conduzem o homem a Deus. Não pode haver progresso humano e não há a justiça de Deus que tudo governa. A vida, no verdadeiro sentido, não a possui cada um em si próprio sozinho, nem mesmo por si só: aquela é uma relação. E a vida na sua totalidade é relação com Aquele que é a fonte da vida. Se estivermos em relação com Aquele que não morre, que é a própria Vida e o próprio Amor, então estamos na vida. Então « vivemos » (SS nº 27). Tal como o agir, também o sofrimento faz parte da existência humana. Este deriva, por um lado, da nossa finitude e, por outro, do volume de culpa que se acumulou ao longo da história e, mesmo atualmente, cresce de modo irreprimível (SS nº 36). Precisamente onde os homens, na tentativa de evitar qualquer sofrimento, procuram esquivar-se de tudo o que poderia significar padecimento, onde querem evitar a canseira e o sofrimento por causa da verdade, do amor, do bem, descambam numa vida vazia, na qual provavelmente já quase não existe a dor, mas experimenta-se muito mais a obscura sensação da falta de sentido e da solidão (SS nº 37). Com efeito, mostrou-nos que Deus – a Verdade e o Amor em pessoa – quis sofrer por nós e connosco. Bernardo de Claraval cunhou esta frase maravilhosa: Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis [29] – Deus não pode padecer, mas pode-se compadecer. O homem tem para Deus um valor tão grande que Ele mesmo Se fez homem para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos é demonstrado na narração da Paixão de Jesus (SS nº 39).