segunda-feira, 5 de abril de 2010

A ascese no mundo contemporâneo

Introdução

Dentro do processo de crescimento da vida espiritual, o cristão é chamando a percorrer caminhos que lhe orientem nessa experiência. A ascese e a mística, nesse sentido, são como que as duas vias necessárias para esse processo. O caminho de vida espiritual no cristão se dá de modo especial pela relação justa entre a ascese e a mística. O crescimento e a maturidade espiritual se dão por uma via ascendente, e essa chamamos a ascética, isto é, faz-se necessário que o homem crie em sua vida espiritual mecanismos que o ajudem no caminho de santidade. A ascese tem esse objetivo. Ela vem para favorecer no cristão esse esforço e esse desejo de crescimento espiritual por meio de práticas cotidianas que visem tal crescimento. A mística se dá num lado oposto ao da ascese. A mística parte da ação que Deus que chama o homem e a mulher para adentrarem dentro do seu mistério. Portanto, ascese e mística são elementos indissociáveis dentro dessa dimensão da espiritualidade cristã. O cristão não pode almejar uma vida espiritual partindo da hipótese de que por meio de seus próprios esforços conseguirá tal feito, contudo, o mesmo não pode deixar tudo entregue às mãos de Deus. Nessa relação, mais do que nunca se faz mister relembrar a máxima de Santo Tomás na qual é afirmada que no homem a graça supõe a natureza. Acreditamos que a espiritualidade cristã é o resultado desta afirmação.

1 Compreendendo o que significa Ascese

Por ascese se entende o conjunto de esforços mediante os quais se quer progredir na vida moral e religiosa. Na sua acepção original o termo significa qualquer exercício físico, intelectual e moral realizado com certo método visando a um progresso; assim, “o soldado se exercitava no uso das armas e o filósofo na meditação”. De tal modo, se pode dar ênfase a dois elementos constituintes da ascese: esforço e método. A palavra já havia adquirido em Platão o sentido de treinamento ou prática moral e filosófica. Mais tarde, é o que afirma Lacoste, encontra-se correntemente o verbo e o substantivo nos autores cristãos no sentido de treinamento da alma para a prática das virtudes e para a vitória sobre a tentação; quem leva uma vida de renúncia, e isso se encaixa no eremita e no monge, é um asceta (asketés). A palavra asketérion é um lugar de askésis, um mosteiro.
Nesse sentido, com a palavra já concebida num aspecto cristão, pode-se afirmar que a ascese consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. O conceito abrange, por isso, um grande número de práticas, em culturas e em etnias muito diferentes, que vão de extrema severidade, a mutilação genital ou a participação em provas que exigem coragem. E isso inclui os hábitos monásticos de diversas religiões, incluindo o celibato, o jejum e a mortificação do corpo por diversos meios.
Desse modo a ascese parte desse desejo humano de atingir um estado de vida santo por meio de práticas de mortificação corporal que o levem a tal estágio de perfeição.

1.2 Ascese e sua evolução histórica

No seu desenvolvimento histórico, o termo ascese foi sofrendo diversas variações e perdendo, no seu contato com o cristianismo, o seu sentido original. “Com efeito, e termo, derivado do grego, adquiriu sentido, por assim dizer, técnico; entende-se geralmente por ascese o conjunto de esforços mediante os quais se quer progredir na vida moral religiosa”. Portanto, originalmente a expressão comportava um caráter de disciplina do corpo como método para a perfeição física, moral e intelectual. O cristianismo dará ao conceito e à prática da ascese um novo significado. Ainda nos Padres da Igreja a idéia de ascese enquanto exercício para o crescimento interior permanecerá. O cristianismo lhe dará uma nova configuração. E a partir daí a ascese deixa de algo estritamente intelectual e moral e ganha um tom de religiosidade cristã.

1.3 Ascese na Sagrada Escritura

Apesar de na Bíblia não se encontrar diretamente a idéia de um método que conduza ao progresso com base em exercícios apropriados, percebe-se a existência da idéia de que por meio da penitência o homem pode chegar ao estado de graça. No Antigo Testamento não se fala de ascese como falavam os gregos em suas práticas físicas para alcançar perfeição física, moral e espiritual. Apesar de se encontrar no Antigo Testamento inúmeros ritos penitenciais realizados pelos judeus como modo de aplacar a ira de Deus, esses ritos de perdão não possuem um sentido de ascese espiritual. São na verdade maneiras de reparar erros cometidos. No Novo Testamento João Batista representa justamente uma corrente espiritual fundamentada na austeridade de vida. Seu modo de viver, seu tipo de comida e suas vestes apontam para um ascetismo. Com São Paulo essa luta transfere-se para o campo espiritual. A vida cristã é luta e combate. O esforço cristão se converte, pois, em abnegação, renúncia e aceitação do sofrimento. Veja o que diz Paulo em 1Cr 9, 24-25.27; 2Tm 2, 3.

1.4 A novidade da ascese cristã

No cristianismo primitivo a ascética adquiriu um significado novo. A ascética cristã supunha igualmente a prática constante de exercício, mas não estritamente físico e intelectual, mas, sobretudo, moral, seja para a aquisição de virtudes, seja para a superação de vícios, cujo resultado era purificação ou purgação dos vícios do corpo e da alma. Outra novidade cristã, com relação à prática ascética pagã e de outras religiões (ascese judaica, islâmica e hindu) é a de valer-se da ascese como efetivo exercício moral que não assenta o seu princípio só na busca de perfeição moral e alcance de sua perfeição natural, mas principalmente na busca de purificação espiritual e alcance de sua perfeição sobrenatural. Por último se tem na ascese cristã aquele elemento que dá à mesmo um caráter especificador: a caridade. A caridade é o bem perfeito do espírito que excede a todos os demais bens. E é para essa meta que deve apontar a ascese cristã . Toda ascese cristã deverá necessariamente estar orientada para essa dimensão caritativa.

1.5 Ascese nos primeiros séculos do cristianismo

Na Igreja Antiga e na era patrística o grande ideal de vida do cristão estará ligado primeiro ao martírio como ideal de perfeição. Os Padres apostólicos comparam com certa freqüência a figura do cristão com a do atleta, como em Clemente romano em sua obra Ad. Cor 15, 31 e, inclusive, Inácio de Antioquia em sua célebre Ad. Pol. 1,3; 2,3; 3,1. Este ascetismo culmina com a proposta de disciplina monástica em que mortificação, penitência, jejum, abstinência e até martírio modelam a vida cristã. Nos primeiros séculos o cristianismo fora movido por esse modo de viver a fé centrada no derramamento do sangue dos mártires e no ideal de virgindade. Num segundo momento, a partir do século IV surge um novo modo de viver a fé cristã. Muitos cristão começam a fugir das cidades para imprimir um ritmo de vida marcado pela solidão e pelo abandono. Começam, desse modo, a surgirem os anacoretas e os cenobitas, homens que vivem totalmente entregues ao abandono do deserto. O monaquismo é fruto desse ideal e vida cristã. Nesse período surgem homens como Santo Antão, Pacômio, Basílio de Cesaréia, São Bento, Santo Agostinho entre outros. Todos estes estão marcado por esse radical estilo de vida. Vivem isolados, jejuam constantemente e estão em íntima oração. Esse modo de vida dos monges irá permear toda a idade média, tornando-se, assim, o ideal de vida para muitos cristãos.
A partir do século XI começam a surgir a ordens medicantes que também imporão um novo estilo de vida para os cristãos. As grandes ordens medicantes como a dos franciscanos e a dos dominicanos ganhou um grande impulso nesta época da Igreja. Eles servirão como norteadores para a vida espiritual da cristandade. Homens como Francisco de Assis e Santo Domingo de Gusmão servirão de marcos referenciais para toda a cristandade. Será destacado também o seus austeros modos de vida.

1.6 A ascese na contemporaneidade


A tradição cristã, com base na Escritura, sempre deu um enorme valor à ascese e procurou descobrir-lhe o seu sentido mais profundo. Os mestres da vida espiritual, sobretudo os místicos, encontraram na ascese uma continua ajuda para o seu progresso e ao mesmo tempo para o seu crescimento espiritual. Contudo mediante o advento da modernidade centrada no homem e na sua autodeterminação frente ao mundo lançou diversas objeções à ascese cristã. Na concepção dos modernos o estilo de vida ascética acaba por neutralizar ou inocular no homem aquilo que de fato o constitui enquanto ser capaz de autorealização. Além disso, diversas correntes de cunho psicológicas acabaram por ver na ascese distúrbios de ordem interior que causam no homem desvios sérios. “Sobre este ponto, a psicologia moderna manifestou graves reservas. Para ela, a mortificação corporal, longe de ser sinal de exigência espiritual, é ante sintoma de desequilíbrio psíquico mais ou menos profundo”. Para essas correntes, muitas das práticas ascéticas acabam sendo fruto de desejos reprimidos pelo indivíduo que vê na mortificação um caminho de compensação. Essa é a visão corrente de correntes e escolas de cunho psicológico que hoje vigoram na sociedade. Veja-se as objeções colocadas a ascese.
São duas grandes objeções colocadas à ascese, sobretudo à cristã. Em primeiro lugar, alguns a acusam de ser uma “mutilação” da natureza humana, no que esta tem de mais precioso. Ora, a teologia espiritual afirma que a ascese não é mutilação, mas poda. E esta poda, ou purificação, tem conseguido árvores frondosas, videiras fecundas como são os santos. Por outro lado, a filosofia e a moral ensinam-nos que é legítimo, é racional privarmo-nos de bens inferiores para nos enriquecermos de bens superiores. E para os cristãos, a graça, a santidade é um bem superior, um bem por excelência. Por causa desta santidade, deste ser em Deus, que beneficia não só o próprio mas também os outros, é legitimo fazer ascese, exigir de si mesmo a renúncia a bens inferiores.
A segunda grande objeção feita por alguns à ascese cristã poderia formular-se assim: “concedendo importância ao esforço ascético, que implica a renúncia e a mortificação, não se aproximam as pessoas de Cristo, da vida, da felicidade, mas antes as afastamos”. Esta afirmação não tem consistência se pesarmos que a ascese nos identifica com Cristo que assumi dar a vida na morte de cruz, que nos identifica e aproxima d’Aquele que viveu em contínuo estado de kenose, de aniquilamento, desde a encarnação à glória.
Por outro lado, o Evangelho é proposta de caminho árduo, estreito, exigente, é convite a não ser maior do que o Mestre é apelo à identificação com Jesus, grão de trigo que morre para dar vida. Se a ascese nos coloca nesta extraordinária morre para dar vida. Se a ascese nos coloca nesta extraordinária dimensão evangeliza, ela ajuda-nos a aproximarmos de Cristo, penitente, orante, pobre, servo, humilde, crucificado e morto na cruz. Este Cristo é o Caminho para a glória, a felicidade, a bem-aventurança. É que não há páscoa sem cruz e sem morte, não há glória sem passar pela dor e pela kenose, não há santidade sem morte a nós próprios. Daí que o asceta cristão procura participar no divino que é dado em Cristo e, quando mais asceta, mais próximo dele, mais identificado com Ele.

1.7 Repensando a ascese

Hoje mais do que nunca os cristãos são chamados a repensarem a sua prática ascética. Mediante uma cultura que rejeita e despreza todos os valores cristãos, mas do que nunca o testemunho cristão deve trilhar novas veredas em busca de sua perfeição e do seu ideal de vida. Não se trata de retrocesso ou enfrentamento com o mundo. O caminho proposto deve ser outro. E o primeiro passo importante nessa caminhada é justamente repensar a idéia de ascese. Como já fora dito, vive-se hoje na cultura de exaltação e divinização do corpo, da saúde, do bem-estar e do prazer. Mediante a mudança de cenário não cabe mais para a sociedade pós-moderna uma idéia de ascese na qual o homem é completamente flagelado por meio de práticas espirituais com destroem seu corpo. A ascese não se resume num esforço puramente físico e intelectual para se atingir a perfeição.
A mudança da praxe ascética não deve ser considerada como uma decadência das formas heróicas penitencias primitivas, mas como as conseqüências decorrentes do fato de que a comunidade cristã vai adquirindo consciência de formas antropológicas novas; de que vai mudando no discernimento de valores e de comportamentos humanos antes considerados preferenciais; de que está imaginado novas maneiras de educar para a vida adulta em Cristo. A experiência ascética é experiência pascal contínua, que se renova através de modalidades antes não praticadas.

O cristianismo é chamado a viver a sua prática ascética de uma nova forma. Faz-se mister superar essa idéia antiga de que ascese é pura e simplesmente mortificação do corpo por meio de práticas austeras e flagelantes. Talvez hoje essa mentalidade não seja mais aceita ou muito menos vivida por grande parte dos cristãos. É claro que não se faz objeção aqueles que optam por tal método. Contudo, não é o mais viável.
Vive-se hoje num mundo marcado pelas tecnologias e pela facilidade da vida prática. Mediante os grandes avanços na área das indústrias e das tecnologias surgem novos desafios para o homem. Como todo desenvolvimento traz consigo seus agravantes, crescem na consciência coletiva a necessidade de conservação do mundo, ameaçado pelas rápidas transformações do planeta. Portanto. A experiência cristã não pode estar alheia a esse turbilhão de acontecimentos do mundo contemporâneo. Seu testemunho de vida deverá perpassar esses cenários. É a partir deles que se deverá repensar a idéia de ascese. Tornar-se-á necessário romper o velho modelo de ascese enquanto mortificação e flagelação corporal para se praticar uma ascese mais voltada para uma inserção no mundo. E isso necessariamente implicará numa ascese também mais coletiva. Talvez essa seja a grande tendência para os anos futuros da humanidade. E os cristãos, mergulhados e inseridos nessa realidade não poderão perder tal fato de vista. Veja o que afirma Dom Walmor:
A consciência deste débito supõe uma novidade na conduta humana contemporânea. A proposta é o cultivo de uma ascese, isto é, uma vida ascética como possibilidade de crescimento e avanço numa configuração menos indiferente, egoísta e perversa que têm marcado as feições deste tempo. Segundo Dom Walmor, não se pode admitir mais que se pense e organize a própria vida, fazendo uso do que está disponível para o bem de todos, com a meta de atendimento, a todo custo, dos próprios interesses e mesmo das próprias necessidades. Esta direção é a direção do fracasso de qualquer sociedade ou grupo humano. Cria-se o desejo tirânico e a convicção do direito de se usufruir de tudo sem comprometer a própria comodidade, devendo lutar, egoisticamente, para garanti-la previamente.

Em seu artigo Dom Walmor deixa claro que a ascese cristã deverá cada vez mais de adaptar a uma nova conjuntura de mundo que dela exige um maior testemunho. Esse testemunho passará não apenas pelo conjunto de práticas espirituais que o rege. Se esta ascese não ganhar novo significado, estará sujeita ao fracasso e ao esquecimento. Portanto, torna-se mais do que nunca necessário repensá-la na prática do dia-dia.
Segundo Dom Walmor, não se pode admitir mais que se pense e organize a própria vida, fazendo uso do que está disponível para o bem de todos, com a meta de atendimento, a todo custo, dos próprios interesses e mesmo das próprias necessidades. Esta direção é a direção do fracasso de qualquer sociedade ou grupo humano. Cria-se o desejo tirânico e a convicção do direito de se usufruir de tudo sem comprometer a própria comodidade, devendo lutar, egoisticamente, para garanti-la previamente, afirma.

Sendo assim, a ascese cristã tem como missão para permanência no mundo redescobrir seu valor e significado para os cristãos. O cristão é hoje chamado a viver a ascese nas diversas circunstâncias do seu existir. Isso se dá no trabalho, na universidade, nos negócios, na família, na política, nas relações humanas, nos compromissos com a vida etc. A ascese deve ser vista e vivida como caminho de crescimento espiritual que leva o homem ao um caminho de santidade. E essa santidade se inclui do no todo de suas ações. A proposta deste trabalho, mais do que tirar a ascese de foco de compreensão, pretende colocá-la num caminho que melhor corresponda as exigências do homem de hoje. Isto significa dizer que a ascese mais do que uma prática isolada do resto da vida do cristão, deve estar em sintonia com toda a sua existência.
Nesta nova prática ascética não se nega o papel insubstituível da mortificação, não se esquece que a cruz é caminho irrenunciável para todos, nem que a natureza humana esteja desviada; propõe-se o uso da mortificação tão-somente a fim de obter amadurecimento humano cristão, e convida-se a oferecer ao Senhor o sacrifício de uma afetividade o mais adulta possível.

Um comentário:

  1. Olá Lázaro, muito bom o blog...
    Que Deus possa guiar teus caminhos...
    Um abraço...

    Fica com Deus!

    Valeu

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